quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Soneto

Anoiteceu, o sopro na janela,
o vento, implacável ao meu redor,
desperta o canto que se quer maior
com outras tintas colorindo a tela

Acordes repovoam o esquecimento
canções esparramadas noite afora
esperam a madrugada, sem demora,
para invadir teu quarto e pensamento

Quantas cores invento a cada dia
para pintar de sonho um novo som
como se a poesia ainda vivesse?

E quantas luas eu não esperaria
pra te dizer quanto seria bom
estar contigo? Isso, se eu pudesse.


quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Às filhas bastardas da ditadura (em 19/04/2003)

"E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim. E é como se então, de repente, eu chegasse ao fundo do fim. De volta ao começo” (Gonzaguinha).

Estive pensando no que deu pra nós no tarot.
A carta, não me lembro qual, dizia que era tempo de romper com as maldições.
De passar por cima de todos os nãos acumulados por tantos anos e que nos impediam e impedem de avançar: os "não pode", "não consegue", "não é capaz", "não sabe", "não precisa fazer isso", "não é possível", "não vale a pena".
Não sei quem veio antes: se a história da Bela Adormecida foi o molde utilizado para nos enquadrar ou se foi uma leitura simbólica do que já eram algumas mulheres.
Lembro da nossa adolescência.
Como na história da Bela, a maldição tomou forma na adolescência.
Nasceu e uma mulher, infeliz com sua vinda ao mundo, rejeitada por ter sido esquecida para a festa de batizado, lançou-lhe uma maldição, segundo a qual, mal entrada na adolescência, ela adormeceria eternamente por obra de um tear mágico.
Era curiosa, aos 15 anos desobedeceu as ordens de ficar longe dos teares, queria vê-los, furou o dedo em um, enfeitiçado, e adormeceu. Até que um principe de um reino perdido viesse libertá-la do sono com um beijo. Era limitado o poder da bruxa, afinal.
Éramos livres, ou nos sentíamos livres e parecíamos saber o que queríamos.
Isso na infância.
Na adolescência, as maldições foram muitas. Não nos enquadrávamos, não tínhamos "vaidades", como convinha às mocinhas da nossa idade. Escondíamos nossa falta de roupas modernas e sorte com os rapazes, pela timidez e inadequação da adolescência, atrás do discurso engajado de meninas inteligentes e à "gauche". Construíamos nosso grupo, lugar de exercício – e construção – da nossa identidade : o grupo das "alternativas". Alternativas por convicção ou por falta de alternativa, por inadequação?
As meninas direitas bebiam guaraná. Tomávamos cachaça.
As meninas direitas eram do grupo de jovens, iam à missa, ficavam noivas.
Éramos da União da Juventude Socialista, iamos às reuniões do Partido, ficávamos tristes.
As meninas direitas debutavam, se confessavam, queriam casar e ter filhos.
Comemorávamos na praia nossos aniversários, éramos agnósticas, queríamos fazer a revolução.
As meninas direitas transavam nos carros dos namorados, se diziam virgens, não se tocavam, não falavam nome feio.
Éramos virgens por não saber como deixar de sê-lo, falávamos de sexo com nossos amigos, buscávamos respostas sozinhas no escuro do quarto, exercitávamos nosso léxico de palavrões cabeludos.
As meninas direitas dançavam música lenta. Não sabíamos dançar.
Cantávamos alto na rua. Elas, de walk-man.
Elas, Raimundo Sodré. Nós, Geraldo Vandré.
Nossos amigos, os "diferentes": homossexuais, enrustidos ou não, futuros suicidas, "bichos-grilo", rebeldes, engajados ou inadequados como nós.
A "turma" delas, os meninos ricos: os bonitos, dourados, surfistas e motorizados, fisiculturistas, esportistas, esportivos, alienados, modelos, cobiçados, protótipos dos futuros bem-sucedidos, enfim.
Negávamo-nos nossa feminilidade e alguma beleza. Éramos endurecidas, pisávamos firme, tínhamos gestos largos, mãos demais para saber o que fazer delas. E a força da palavra. Falávamos para auditórios, em reuniões, em palanques.
Com o garoto desejado, emudecíamos. Eramos vistas, respeitadas, apontadas, admiradas, rejeitadas, nas mesmas proporções. À distancia, como cabe aos "diferentes". E queríamos abraço, mesmo assim.
Elas não precisavam estar no centro. Eram meninas-mulheres. Tinham o encanto da sensualidade que se revelava. Não precisavam da força verbal e gestual. Podiam ser frágeis, era o seu charme.
Nós, não. Para a patrulha ideológia seria imperdoável: "desvio pequeno-burguês".
Ainda assim, do alto do morro, à força de largos goles de vinho barato, chorávamos ao pôr-do-sol ou nas festas da lua; de frente à fogueira ou cantando canções. A dimensão do poético era permitida, pois que a angústia de viver e crescer era contestatória afinal.
Assim vagamos, nunca totalmente entre os adultos, que nos faziam concessões, dado sermos exceções; nunca totalmente entre os "outros" adolescentes, pra quem tanto éramos divinos, por ousar, quanto malditos, pela exclusão que nos impunha a ousadia de sermos diferentes. Diferença que era escolha, negação ou condição?
Assim chegamos aos nossos teares. Furamos os dedos, adormecemos. Estava instaurada a nossa maldição. O fuso do tear nos penetra até a alma. Enfim, seremos "normais". No tear, a descoberta do masculino no outro, do encontro da carne, o desabrochar do prazer-dor, do amor que redime e concede o auto-perdão. Com ele, o direito a ocupar espaços antes proibidos, por outros, por nós.
Vêm os filhos, a casa, o trabalho, parece que enfim, estamos, chegamos, podemos.
Mas é condição intermitente. E se vai. O príncipe vira sapo, o mundo pesa. O seu beijo não nos desperta. A maldição não é quebrada. E fica o gosto de sangue e de sono, do perdido, do não alcançado.

A carta do tarot, simbólica como a história da Bela, o que dizia, afinal?
Talvez que crescemos e que não tem mais bruxa, nem fada.
Aprendemos o batom e o perfume, o vestido e a cor. Permitimos o riso e assumimos os riscos. Somos. Podemos seguir. Mudamos de gestos e o tom do discurso, não de lado. Acreditamos e queremos romper com a maldição. Sabemos que despertar do longo sono vai doer e que o beijo do príncipe virá nos libertar. E ele não vem de longe, em um cavalo branco. Vem de dentro, da nossa dimensão masculina, aceita, suavizada. Revela-se no casamento entre a força e a doçura dentro de nós. Força enquanto atitude, para desafiar e vencer as maldições. Doçura enquanto expressão: o beijo como arma. Ele, o príncipe que há em nós, nos revela inteiras e libertas. Nao há príncipes externos a esperar. A força está lá dentro, sempre esteve: quando a buscávamos, querendo ser/sendo menino-guerreiro; quando a negávamos, pensando ser/sendo, esposa-mãe e trabalhadora exemplar. Escapamos cansadas.
A força não é mais oposição. É a aceitação do todo em nós: o feminino/masculino, homem/mulher. Completos, presentes, fundidos, misturados, complementares, contraditórios. Partes e todo em nós, suave beijo contra a maldição da história. Maldição, que assim como a força, nunca existiu, senão dentro de nós, de cada um, e nas histórias que ouvimos, criamos, construimos, contamos.
E nas cartas do tarot.

(escrito para Niza, Heronilza Ferreira do Nascimento, em Paris, quando o seu sorriso solar ainda iluminava esse mundo)

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A casa da viúva (em 17/02/2002)

Cinco, sete anos? Não me lembro direito. Estava naquela idade em que o tempo ainda não tem tanta importância e a gente se contenta em guardar fragmentos de imagens, cheiros, sabores, descobertas.

Rua Presidente Bandeira. À época, avenida Dois. Ainda tinha a linha Vila São José pela rua Jaguarari e uma espera tão grande pelo ônibus, que do Barro Vermelho ao Alecrim era melhor ir a pé. Ainda ruas de areia, e de paralelepípedos, muitas. Ainda lentidão no despertar, no caminhar e no viver. Tudo amanhecia meio preguiçoso nos muitos dias de sol de Natal.
A casa funerária era a maior da cidade. Metiam medo todos aqueles caixões roxos e grinaldas artificiais, coisa de assombração, não da morte, que quase sempre parece distante na infância.
Não tinha como desviar, era o roteiro obrigatório até o endereço encantado. Sábado, movimento, feira, comércio, passada a porta do medo, logo ali, vizinho, o endereço.
A Casa ficava abaixo do nível da calçada. Bastava descer uns degraus e se via o balcão. O rosto por detrás me foge, sei que era viúva e sempre vestia preto, com um lenço no cabelo. Sobre o balcão, calendários de santos, do Sagrado Coração, de gatos, de crianças rosadas de olhos azuis. O tesouro, os pequenos livros com capas ilustradas, miolo em papel jornal, modestos, empoeirados, amarelecidos pelo tempo. Custavam o troco da feira. Quando havia troco - quase nunca - minha mãe comprava o que podia. Às vezes um, às vezes mais.
Contavam historias de reinos distantes, dragões e princesas encantadas, combates heróicos e viagens sem fim. Minha imaginação se enchia de pavões voadores, meio bicho, meio nave, cachorros que venciam dragões, reinados subterrâneos que desapareciam miraculosamente à luz do dia.
À noite, meu pai contava e cantava de cor essas historias, todas rimadas e ritmadas, e findava por adormecer. Ele. Eu continuava a viagem até a caverna do dragão, esquecendo o medo das flores de plástico, o calor e os mosquitos, até os olhos pesarem mais que a fantasia.
A funerária cresceu, a calçada subiu. A casa foi engolida pelo asfalto. A viúva desapareceu.
Faz tanto tempo!
Às vezes eles ainda voltam, à noite: o pavão misterioso, Juvenal e os seus cachorros mágicos, Rompe-ferro, Ferrabrás. Às vezes ainda chego até a entrada da caverna e vejo que o dragão continua dormindo seu sono eterno de lenda. É então que durmo também. E sonho, um sonho leve, de sono sem medo.