quinta-feira, 31 de julho de 2008

Reciclagem

Onde se dá a quebra? Onde, a curva em que o amor começa a se desinventar? Em que palavra (mal)dita, em que espera, em que conjunção astral, em que eclipse?

Em que momento se perde a possibilidade do que se ganharia?

Por qual brecha do tempo eu te deixei escorrer?

Cacos enterrados, ouço Jacques Brel: “je creuserai la terre jusqu'après ma mort pour couvrir ton corps d'or et de lumière”.

Teu corpo. Ouro e luz. Enlevo perdido, vidro que eu não soube evitar que caísse e se partisse. E desse vidro te refarei. E dele, fundido pela chama, outro corpo inteiro, de outra forma, de outra cor, renascerá.


terça-feira, 29 de julho de 2008

Da fogueira das vaidades e do anonimato

É complicado viver em uma cidade que cresceu depressa, onde ainda impera o pensamento provinciano. Tenho visto cá e lá, navegando na internet, de concidadãos, em páginas interativas, discussões tão plenas de citações quanto estéreis, sobre o sexo dos anjos, a morte da bezerra e temas afins. Trocas de farpas, competição, uns tentando se sobrepor aos outros, sem perceber que ainda que diferentes, para todos haverá espaço. Por trás dessas rinhas, para qualquer observador atento, vaza a intenção real dos interlocutores: a vaidosa afirmação de um presumido conhecimento. Aí ele se perde do seu fim mais nobre: a partilha. O conhecimento, creio, só tem sentido quando e se compartilhado, distribuído, democratizado. Mas cada um desses exibicionistas - pseudo-intelectuais de plantão - se esmera em apenas enumerar suas qualidades de leitor, de cineasta, de teatrólogo, de fazedor de arte. Acrescentando o quê a quem?

Quem nasceu e cresceu em cidade pequena e teve depois a experiência de viver em metrópole, sabe o que é o anonimato. É doloroso, é solitário, mas poucas vivências são tão enriquecedoras. Isso é: para quem sabe delas tirar lições. Longe dos seus, das suas referências todas, sem conhecer ninguém, sem ter com quem trocar palavra, sem ter com quem contar, você se dá conta do que realmente é ali: nada. Ninguém. Você percebe que aquele pequeno universo onde está inserido não dará pela sua falta se você sumir. Que tudo continuará tal e qual. Que a vida seguirá seu curso, malgrado o seu desaparecimento.
A partir daí é possível se reinventar. Perceber o que realmente conta. Ser percebido por quem você é. Sem títulos. Sem reverências. Despido. Ser querido ou querer, por afinidade, empatia, qualidades humanas. Fora da superficialidade da fogueira das vaidades, da afirmação da bagagem adquirida.
O anonimato ensina, entre outras coisas, que todos, todos os saberes, provenientes dos simples ou dos consagrados, hão de ter seu valor.


sábado, 26 de julho de 2008

Última forma

"É, como eu falei, não ia durar. Eu bem que avisei: vai desmoronar, hoje ou amanhã..."
Miltinho abafa o palavrão que me engasgava, cantando Baden e Paulo Pinheiro. Deixo que exerçam, a voz dele e o palavrão, sua função terapêutica.
Vi ontem uma porção de gente, conhecida e não, jovens e dinossauros. Pastamos todos juntos, comungando a noite. A moça bela-burra com quem você deitou. O marido inocentemente feliz a tiracolo. Meu violonista predileto. Os chorões. Uns amigos. Uns franceses. Umas putas. Uns putos.
Vi desfilando no beco escuro, personagens do seu universo, tão rodrigueano. Lamentei por tudo, ma non troppo. Cantei até ficar rouca. Entornei umas tantas cicarelis. Troquei idéias com quem não conhecia. Picotei, rasguei, triturei o seu retrato. Não o joguei na calçada. Podia alguém pegar e colar e guardar.
Fui ficando, até o bar fechar. Fui ficando, até o povo sumir. Fui ficando, até a noite clarear. Fui ficando, até querer sair, levando minhas rimas óbvias no meu carro desbotado, trilhando irresponsavelmente as ruas bêbadas.
"E sabendo com quem eu lidei, não vou me prejudicar. Nem sofrer, nem chorar. Nem vou voltar atrás. Estou no meu lugar. Não há razão pra se ter paz com quem só quis rasgar o meu cartaz. Agora pra mim você não é nada mais..." - canta o MPB4.
Nunca lambi um cabo de guarda-chuva, logo, nunca entendi porque há quem diga que ressaca deixa na boca um gosto de cabo de guarda-chuva. De qualquer forma, nenhuma ressaca. Nem moral, que é a piorzinha delas. Vasculhando a bolsa encontrei o diabo do retrato intacto, me sorrindo descaradamente.
"E qualquer um pode se enganar. Você foi comum, pois é, você foi vulgar. O que é que eu fui fazer, quando dispus te acompanhar? Porém pra mim você morreu. Você foi castigo que Deus me deu" - prossegue o fundo musical.
Vou enfiar o seu retrato embaixo de todos os outros da caixa de papelão. Quando tiver esquecido, arrumo a caixa pra ver se ele ainda me causa algum impacto. Por enquanto, vou escutando repetidamente "última forma": "e como sempre se faz, aquele abraço, adeus e até nunca mais".

sexta-feira, 25 de julho de 2008

dos olhares

Devo estar ovulando - pensou. Ou estava dormindo até então, só podia ser isso.

Ruinzinha como era pra perceber olhares, sempre tinha vivido as histórias afetivas mais improváveis de darem certo.
A mãe disse uma vez só em toda a vida: "é, você é uma moça 'até' vistosa". Insegura como quê, não se percebia lá muito bem. A timidez piorava as coisas. Família grande, zelosa, preocupadíssima com o seu futuro intelectual, não podia alimentar vaidades, assuntos menores. Sentenciou, pois: "não fosse pelo seu esforço em aprender, sua curiosidade intelectual, você seria nula", ou algo assim. Absorveu por um tempo longo isso. Depois mandou às favas as expectativas dos outros e tratou de ir ser feliz. Vendeu os livros no sebo, gastou os trocados com roupas, perfumes, batons e outros mimos. A natureza ajudava, os esportes completaram o serviço. O corte de cabelo anos 80 foi definitivamente abolido. Com o resultado, satisfatório, os olhares proliferaram. Aí ficou com saudade dos livros, tratou de arrumar trabalho, voltou aos sebos, comprou outros livros, abandonou os esportes. O primeiro investimento era mesmo o que lhe agradava. Desdenhou os olhares e foi tocando a vida.
Agora inaugurava outra fase só. Novamente. Em uma cidade com tantas mulheres, o tempo jogando contra não ajudava muito, mas, surpreendentemente, voltaram os olhares. Outros, de mais velhos, mas ainda assim, inesperados.
_ O problema não é com você. É com sua cabeça. Até tem quem queira, mas você é que parece ter a mira torta, fora de prumo - disse o espelho.
Começava a achar que ele tinha razão. Pensou na trajetória do passado. Na maior parte das poucas e longas histórias que vivera, tinha sido escolhida. Não deram lá muito certo. Ou deram, por algum tempo. Nas que quis viver, nas escolhas que queria fazer, invariavelmente não encontrava ressonância. E de repente, depois de tanto tempo, abriam-se algumas portas, tinha algo de novo no ar.
Voltou ao espelho, que como o de Cecília, tinha alguns anos a mais que ela. Capitulou: "você venceu. Vou tratar de aprumar a mira. Aproveitar a ovulação para retribuir os olhares que podem valer a pena".
Era hora de acordar.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Diplomacia

Passava da hora de mudar de foco, de alvo. Até porque o derradeiro não tinha vingado. Mas ainda que prenhe de impossibilidades, lhe rendeu bons frutos: menos cinco quilos, liberdade, reconciliação com a escrita, um amigo de ouro. Pro futuro, talvez dois. Vá saber. Era um escorpião. Outro, aliás.
Quando encontrou o primeiro, era adolescente. Ele, dez anos mais velho, achava interessante trocar idéias com aquela moça que lia. Parou por aí. Se percebeu algo mais, se fez de desentendido. Com o segundo, o buraco era mais embaixo. Inaugurou com este uma bela coleção de nuncas e nãos. Um ano transcorreu até que fechou o ciclo com mais um não.
Foras, quem não os deu? Já tinha dado alguns, tomado outros. Nunca nenhum assim antes. Daqueles bem no capricho, de quando você não quer ferir, nem magoar, quando preza o outro e aí vai tentar convencê-lo de que na verdade ele não gosta mesmo de você. Que aquilo tudo é criação, impressão ou coisa parecida.

Quis dizer que não era idiota, que sabia pelo menos o que sentia. Resolveu deixar pra lá. Quis dizer que concordava com ele, que ninguém conhecia ninguém, que tudo o que se tinha eram impressões sobre os outros. Quis dizer que amealhou discretamente, ao longo daquele ano, todas as informações que podia sobre ele, tamanha era a sede de conhecê-lo, tanto era o querer. Informações colhidas junto a pessoas que o conheceram, que passaram por sua vida ou ainda permaneciam nela. De um amigo dele, histórias, vivências, exaltação de suas qualidades; de uma ex-namorada, carinho, admiração; de um ex-amigo, xingamentos diversos, relatos de traição e deslealdade, mágoas e raivas, sentimentos confusos; de conhecidos, depoimentos controversos, testemunhos de casos pitorescos, de aventuras, de paixões e sem-vergonhices. Dele mesmo, um sorriso que fazia tudo o mais parecer sem importância e iluminar a vida por um mês, no mínimo; uma voz arrastada, preguiçosa, mansa, que dava sentido às suas noites vãs. Quis dizer que sabia que ele era só um homem, cheio de contradições e defeitos, como os demais. Que o querer ou não querer não obedeciam sempre à razão e à lógica. Não disse. "Tá legal, eu aceito o argumento" - decidiu.
Na manhã de chuva do day after acordou cedo e de alma limpa, como se o vinho da noite anterior fora água. A alegria da véspera continuava lá. A vida, infinita em promessas. À frente, um caminho a construir. Antônio Machado deu o tom: "caminhante, não há caminho/faz-se o caminho ao andar".
Há finais e finais. A história já tinha doído tanto durante, que quando desistiu dela, nem doeu mais. Pelo menos, não até aquele momento. Boa samaritana que às vezes era, ainda sob o efeito da ferroada do escorpião, tratou de perceber no desfecho, qualidades, como se não bastassem as que já constavam do repertório. Concluiu: "se ele não fosse tanto, assim, talvez tivesse doído". A diplomacia é mesmo o segredo do negócio.

Depende de como você quer ver

Amanhece. O canto dos grilos e os bem-te-vis saúdam o dia. Pela janela, o céu de um azul indecente emoldura os galhos do cajueiro em flor. O vento brinca de espalhar raios de sol pela sala, refletidos nas folhas da palmeira. Na soleira da porta, sempre apressado, o beija-flor costumeiro parece pairar por uns segundos e de novo some. A vida traz em conta-gotas os seus presentes.
Ouso querer me perguntar como não estar feliz diante de tanta beleza gratuita e me assaltam as raízes da educação católica e do doutrinamento partidário do passado, perguntando, por sua vez, sobre os flagelos do mundo. Empurro esse pensamento pra longe, deixo a preguiça ir saindo devagarinho, prefiro me deter sobre a utilização do espaço aéreo e os vôos de baixa altitude das abelhas e arapuás. Na natureza, tudo se harmoniza. Em sociedade, o oposto. Deixo a segunda de lado por enquanto, sem culpas.
Um amigo me diz que tudo depende de como você quer ver. Discordo dele pra que possamos discutir sobre isso. O debate me agrada. No fundo, concordo, mesmo sem querer dar o braço a torcer. A vida está aí, a mesma vida, sendo percebida de múltiplas formas. Sobre o mesmo fato, várias interpretações. Sobre a mesma paisagem, olhares diversos.
Estou feliz, sinto muito, desculpem-me os que não. Sinto-me hoje, não sei porquê, parte da dança da palmeira, da viagem do vento, da cantilena dos bichos, dos raios de sol. Sinto a alegria da leveza, sem questionar demais, sem complicar demais.
Dia de viver, tão somente. De sentir, sem querer sempre compreender tudo, porque nem tudo se compreende. De seguir em frente, sendo feliz quando dá.
Tudo depende de como você quer ver.

(Obrigada a Bob, pelo mote)


quarta-feira, 23 de julho de 2008

O tempo traz todas as respostas

Decidi deixar o tempo dizer.
Ou ele tem andado mudo ou eu surda.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Ciclo

Por vezes tenho calma
A languidez dos monges

Paciência
Timidez
Doçura quase servil

Por vezes tenho verve
Discurso pronto
Inteligência aguda
Seriedade absoluta
Perceptível atrás dos óculos

Mas quando a lua é cheia
Tenho um brilho nos cabelos
Língua ávida, boca úmida
Sede,
Desenfreada,
Olhos de lince, molhados,
Entre as coxas uma fogueira

Não deito com qualquer um
É preciso que me encante
Que me excite
Que me ganhe

Amo só quem quero amar
Mesmo só,
Com minhas mãos
Dedos e imaginação


Lua gira, lua cresce,
Lua mingua e tudo volta

E a boa moça se comporta
Até outra lua cheia


terça-feira, 15 de julho de 2008

Da solidão

A lua crescente acende a escuridão. Ninguém por perto. É longo e estreito o caminho até a madrugada. Guardo o leito, antes por desuso que por repouso. Os gatos sabem de tudo. Desvendam as noites, ruas, telhados, desdenham os segredos alheios que testemunham de passagem, indiferentes, majestosos como só os felinos sabem ser. Na esquina, travestis disputam clientes, aos gritos ou tapas - dependendo do humor e do faturamento - enquanto a polícia faz de conta que faz a ronda. O calor aumenta, suportável porém. O bar, fechado; as casas, silenciosas; outras casas e ruas, salas, quartos, cidades. Tudo é igual e tudo é diverso. Haja fome ou fartura, desejo ou torpor, bombas ou silêncio, as solidões se parecem, as alegrias se parecem, os medos e coragens se parecem.
A lua crescente não me traz o que eu queria. Que há de novo nisso? É comum querer o que não há, o que não está, o que não vem. Ela me traz à lembrança, tão somente, palavras de Paul Valéry: “as pessoas se diferenciam pelo que aparentam e se assemelham pelo que escondem. Os abismos são muito parecidos. A vegetação que os cobre é que os faz diferentes”. Ao som do toque de recolher, lhe digo até amanhã. E como tantos outros insones, digo boa noite ao amor que não tenho.


sábado, 5 de julho de 2008

do sonho e do mar

Cabelo ao vento, correndo, correndo, sem nunca chegar ao fim da calçada. Do lado esquerdo, a praia. Lado direito, não sei. O sonho se repete desde a mais tenra infância. No despertar, a impressão de ter passado a noite inteira correndo. Cores nítidas, azul vivo, cheiro de alga. Nunca entendi esse sonho nem o porquê das repetições, espaçadas porém. Aos cinco anos, talvez aos 12, aos 20, depois também. Sempre há pessoas, sempre andando no sentido contrário, nenhuma delas conhecida.
Conheci o mar tarde, apesar de ter nascido no litoral. Depois de um dia de molho e uma noite sentindo como que o balanço de um navio, depois de acordar mareada, fiquei preferindo a areia. Pisava a espuma, que nesse tempo era branca, percorrendo a praia inteira, a pequena praia de Miami-RN, extinta com a construção da via costeira. Na expedição, o olhar surpreso sobre as formas, cheiros e cores que se descortinavam à minha frente. Eram algas parecidas com alface ou cachos de uva em miniatura, em verde-folha, escarlate, marrom. Conchas e estrelas, caravelas azuis, rôxas, transparentes, marias-farinha cor de areia correndo de ré, de lado, desaparecendo na espuma da beira-mar. Mais tarde outras praias, não urbanas, de outras paisagens, coqueirais ao norte, falésias ao sul, acampamentos, violão, fogueira, luar, aguardente branca e áspera, mundo girando, noites estreladas de estrelas dançantes.
Muitos anos passados, morei longe do mar. Andava pela cidade e me perdia de quando em vez, de propósito, escolhia uma direção e imaginava que seguindo sempre encontraria mar ou rio. Encontrava, um rio enorme, poluído, cheio de pontes, barcos e água escura. Sonhava com o mar, sentia necessidade orgânica do mar, de estar perto dele, sentir seu cheiro, seu sal.
Quando voltei à minha cidade natal, não o busquei muito, me contentava em saber que ele estava perto.
Ontem sonhei novamente correndo ao longo da praia desconhecida. Vendo-o ou não, o mar sempre volta. Voltam as ondas, volta a lembrança, volta a infância com cheiro de alga; como depois do maremoto, a calmaria. Como depois da tristeza, a esperança.


terça-feira, 1 de julho de 2008

Carta a Antônio 2008

Caro Antônio,

Vou dizer umas coisas que eu não disse, coisas que você já deve saber, caso seja o bom observador que parece ser: há duzentos anos amei você. Amei do amor que cabia em todas as canções. Amor de arrancar tôco, amor demais, amor maior, amor em paz. Por esse amor eu faria de um tudo, coisas certas e erradas. Cometeria desatinos. Passaria a semana inteira comendo carne vermelha. Jogaria latas de cerveja na rua pela janela do carro. Faria o caminho de Santiago a pé, subiria de joelhos a ladeira da Sé de Olinda, iria ao Juazeiro pagar as promessas que não fiz ao padre Cícero. Deixaria de beber, de fumar, de falar do próximo quando distante. Compraria dois automóveis, todos dois pra ti, mesmo sem tostão. Meu caro Antônio, duzentos anos voam, mas ainda assim é muito tempo. Passei por todas as fases: a paixão fulminante, a desilusão, o desatino, o tempo da delicadeza. Chorei tanto que o Orós sangrou. Bebi tanto que quando parei fui procurada para dar palestras no AA. Se tudo passa e tudo muda, era preciso que você soubesse que tudo finda. Se eu quis tanto outrora, hoje já não quero saber os porquês. É muito simples: há o querer e o não querer. Você não quis. Tudo o que daí decorre, as razões todas para o não, já me afligiram, já me ocuparam o pensamento. Compreensiva que sou, compreendi todas elas e saí pela tangente do principal, do que eu não estava ainda preparada para perceber naquele século distante. Você não me quis.
Quando comecei a entender que era só isso, juro que me senti a quintessência do nada, a derradeira das criaturas, o cocô do cavalo do bandido e expressões semelhantes. Não era preciso nada disso. Eu já sabia que não era nenhuma beldade, sex symbol ou coisa que o valha. Já me aceitava assim mesmo, mediana no máximo. O nó de marinheiro foi aceitar o fato, não ter você, ter que desistir. Você sabia do meu amor. E me fez mal querendo fazer bem. Porque você é bom, mas agiu errado. Pelo seu cuidado, não me disse: vá, não lhe quero. Foi polido. Preocupado. Atencioso. Minha percepção estava tão distorcida que interpretei isso como possibilidade de querer, esboço de aproximação, alimento. Por isso demorei tanto a ver o que estava tão claro. Então vi.
Meu caro Antônio, hoje eu sei. Você não imagina nem de longe o que perdeu. Não sabe que eu tinha um tesouro pra lhe oferecer. Um tesouro sem preço, cheio de estrelas, entardeceres, canções, prazer, carícias, risadas, devaneios, cumplicidade. O tesouro que era o maior amor do mundo.
Mas duzentos anos se passaram. Você ficou em algum lugar distante na minha lembrança. Você não me entristece, não me desafia, não me instiga, não me atiça, não me alegra mais. Sei que você é raro, mas pra sobreviver lhe tirei o posto. Mandei você pra esfera dos comuns. A vida é assim, meu caro. O amor é assim.
Quero, se puder, lhe pedir uma coisa. Se um dia, por via sabe-se lá de quê, você pensar em mim, pense como algo bom. Pense que quero muito você feliz. Pense que você é precioso, não importa o posto que perdeu. Já lhe disse, foi estratégia de sobrevivência. Ele é seu e é merecido. E mais, se preserve. Não jogue pérolas às porcas. Mantenha distância de quem não souber lhe perceber, pois essas pessoas não valem a pena.
Meu caro Antônio, nesses últimos duzentos anos aprendi tanto! Tomei de volta minha vida em minhas mãos. Espero ter aprendido a amar, mais um pouco.
Daqui lhe envio meus melhores desejos, meu adeus, até breve, até um dia.

Maria