sábado, 26 de julho de 2008

Última forma

"É, como eu falei, não ia durar. Eu bem que avisei: vai desmoronar, hoje ou amanhã..."
Miltinho abafa o palavrão que me engasgava, cantando Baden e Paulo Pinheiro. Deixo que exerçam, a voz dele e o palavrão, sua função terapêutica.
Vi ontem uma porção de gente, conhecida e não, jovens e dinossauros. Pastamos todos juntos, comungando a noite. A moça bela-burra com quem você deitou. O marido inocentemente feliz a tiracolo. Meu violonista predileto. Os chorões. Uns amigos. Uns franceses. Umas putas. Uns putos.
Vi desfilando no beco escuro, personagens do seu universo, tão rodrigueano. Lamentei por tudo, ma non troppo. Cantei até ficar rouca. Entornei umas tantas cicarelis. Troquei idéias com quem não conhecia. Picotei, rasguei, triturei o seu retrato. Não o joguei na calçada. Podia alguém pegar e colar e guardar.
Fui ficando, até o bar fechar. Fui ficando, até o povo sumir. Fui ficando, até a noite clarear. Fui ficando, até querer sair, levando minhas rimas óbvias no meu carro desbotado, trilhando irresponsavelmente as ruas bêbadas.
"E sabendo com quem eu lidei, não vou me prejudicar. Nem sofrer, nem chorar. Nem vou voltar atrás. Estou no meu lugar. Não há razão pra se ter paz com quem só quis rasgar o meu cartaz. Agora pra mim você não é nada mais..." - canta o MPB4.
Nunca lambi um cabo de guarda-chuva, logo, nunca entendi porque há quem diga que ressaca deixa na boca um gosto de cabo de guarda-chuva. De qualquer forma, nenhuma ressaca. Nem moral, que é a piorzinha delas. Vasculhando a bolsa encontrei o diabo do retrato intacto, me sorrindo descaradamente.
"E qualquer um pode se enganar. Você foi comum, pois é, você foi vulgar. O que é que eu fui fazer, quando dispus te acompanhar? Porém pra mim você morreu. Você foi castigo que Deus me deu" - prossegue o fundo musical.
Vou enfiar o seu retrato embaixo de todos os outros da caixa de papelão. Quando tiver esquecido, arrumo a caixa pra ver se ele ainda me causa algum impacto. Por enquanto, vou escutando repetidamente "última forma": "e como sempre se faz, aquele abraço, adeus e até nunca mais".

Nenhum comentário: