sexta-feira, 27 de junho de 2008

Outra possibilidade

Saiu sem saber direito o quê ou quem ia encontrar. De diferente, um frio revolvendo a boca do estômago, as mãos geladas, uns tremores sacudindo o corpo, ansiedade sem motivo aparente. A cabeça começava a doer prenunciando mais um inferno, a têmpora direita não parava quieta: a cada palpitação, uma agulhada nos miolos. Maldisse a cerveja do dia anterior, tomou analgésico, seguiu. Chegou no bar, pediu coca-cola, tentou adivinhar o que viria a seguir. Conseguiu, mas não acreditou muito até vê-lo, riso largo, barba por fazer, bonito - tão bonito! Levantou-se da cadeira, um abraço cordial, beijo rápido no rosto, a quase euforia contida. O corpo tremia tanto que teve medo de se denunciar. Correu até o banheiro, sem vontade de nada, lavou as mãos, repetiu mil vezes: calma! Voltou à mesa com a têmpora explodindo, decidiu beber. Foi pior. O anúncio na placa luminosa à frente deu o golpe de misericórdia, a dor crescendo. Acabou que veio a calhar, a placa, pois de onde estava não podia vê-lo bem sem ser percebida, decorar seu rosto, decifrar seus movimentos. A pretexto dela, pôde então sentar-se do outro lado da mesa, olhá-lo de frente, aproveitar os intervalos das agulhadas para imaginar, quase sentir, o roçar daquela barba na nuca. Pensou: é hoje ou nunca. O inesperado tem dessas coisas. Tudo acenava que estava mais pra ser nunca. Conversas e silêncios, por que é que essa dor não passa, por que é que esse povo não vai embora, por que não adivinhei antes, por que não paro de tremer, por que não saímos daqui correndo, por que não desligo o telefone? Tocou. Não era mesmo pra acontecer. Bom demais pra ser verdade. Tenho que ir. Desculpas etc. Saiu murcha, morrendo de dor e frustração, maldizendo o telefone, a ineficácia do remédio, a brevidade do encontro, a impossibilidade, o inesperado. Talvez nunca mais. Talvez algum dia. Talvez. Levou pra casa, colados na lembrança, todos os fragmentos dele que conseguiu reter: rosto, boca, riso, pernas. Dormiu com eles, dormiu com ele. Não sonhou. O despertar sem dor e o sol nascente abriram outro dia. Outra possibilidade.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Soy libre?

Cada um escolhe suas amarras. Livre até certo ponto. Liberdade de ficar ou partir, de querer ou desquerer, liberdade relativa. O amor liberta, a gente é que faz dele mau uso, deixando-o com cara de cárcere. Artur da Távola, em seu belíssimo ensaio Do amor: ensaio de enigma, alerta para essa distorção. Escreveu que muitas, muitas pessoas mesmo, se unem por motivos como a solidão, o interesse, a carência, as afinidades, o desafio da conquista e até por amor. Poucas o fazem pela felicidade. E assim se deixam ficar até chegar o cansaço ou morrerem infelizes para sempre. É que- disse ele - o amor é leve e perfeito. Nós, imperfeitos, o sobrecarregamos com expectativas, podas, intolerância, cobranças, até que ele vire fardo, se esgote, se vá de vez deixando oco ou ranço. Uns poucos sábios saem antes, quando ele ainda pulsa mas já não encontra espaço, fazendo-o assim virar poema, lembrança, canção.
Em meio a histórias esgotadas, relações que morreram em presença, fica difícil vislumbrar saídas, fica difícil ver à frente um caminho aberto, cheio de luz. E nos deixamos ficar, tristes, acabrunhados, mal humorados, cheios de questões vazias - haverá um novo amor? encontrarei alguém? serei feliz? - cuja resposta está nelas mesmas. Questões que podem ser respondidas com outras questões pertinentes: há um amor agora? o que estou vivendo é um encontro? estou feliz?
Diante da negativa, não há porque choro nem vela. O recomendado, segundo Vinícius de Morais, é sair sem alarde, mansamente, levando uma muda de roupa e a escova de dentes. Porque virá sim, o luto. Mas dura, no máximo, acredito, uns três meses. Dói pra danado, intensamente, mas passa. Depois mostra o brilho da estrada nova. E o quanto não já doeu mornamente no durante?
É preciso coragem, é preciso destemor, é preciso força, mas vale a pena. Partir é também libertar-se. Ao deixar algo para trás, que nos fazia ficar atrás também, nos abrimos para o que pode vir. E o que virá pode não ser necessariamente alguém, mas há de ser amor. O reencontro amoroso consigo mesmo, com o seu eu mais profundo, submerso até então, que encerra porém, tesouros a descobrir.
O amor liberta. E há que se libertar o amor. Talvez seja hora, como no mito de Prometeu, de subir até o rochedo e cortar-lhe as amarras, dar fim ao seu suplício, ao invés de a cada dia bicarmos como abutres seu fígado. E como tudo vira canção, cantar também: "soy libre, soy bueno y puedo querer".

terça-feira, 24 de junho de 2008

Desconstrução

Quem quiser saber sobre seu paradeiro
procure as pistas, leia nos caminhos
ache as pegadas na estrada de terra
na encruzilhada, pergunte à cigana
veja nos astros os segredos dela

decida logo, pode chegar tarde
saiu, sumiu, nem deixou endereço
acordou cedo, nada mais queria
nem café morno nem a vida igual
andar ligeiro, nem olhar pra trás,
pra não tornar-se estátua de sal
cansou de tudo, o desamor, o espinho
cansou de cedo conhecer a dor
cansou do medo, do seu descaminho
do ser sozinho, do pranto cansou,
como cansou do riso e da canção
da longa espera, o nada anunciado
o possível, o impossível, o namorado
o noivo, o amor, o amante e a mentira
cansou, se foi, saiu cedo com o dia
não volta mais porque se foi de vez
em seu lugar, a si mesma deixou
que era, porém, outra, por sua vez.

domingo, 22 de junho de 2008

Mercedes

Eu tinha dez anos quando A Arte de Mercedes Sosa entrou lá em casa. A sonoridade dos tambores e a voz grave, forte, o timbre particularíssimo, causaram estranheza em um primeiro momento. Era um álbum duplo em vinil, capa branca, as letras impressas no lado interno do encarte. A "família engajada" tratou de me guiar nos passos dessa descoberta. E eu bem que quis. Tratei de aprender a cantar todas as músicas, acompanhando o som da vitrola, completando com a leitura de uma língua também estranha até então. Irmão aprendia os acordes de ouvido, passava para a viola, irmã fazia as traduções, explicando todo o sofrimento do ‘pobre povo trabalhador’ e as denúncias cantadas. Aquilo me seduziu, me emocionou, se apoderou de mim, e é certo que influiu diretamente nos caminhos posteriores, na militância política, na opção pelos excluídos, por mais que o discurso hoje pareça gasto e antigo.
Não conseguia não me comover até as lágrimas ouvindo o violino de violin de Becho, pensando nas crianças de Niño en la calle, ou não me indignar junto com o texto de Plegaria a un labrador. Alguns anos mais tarde, aprendi toscamente a tocar Volver a los 17 no violão.
Mercedes é intrigante. Quem conheço que não gosta, dificilmente vai vir a gostar. E para todos os que conheço que gostam, virou vício desde a iniciação. Assim foi lá em casa até o fim do vinil. Entravam com ar de grande novidade, com a ansiedade que antecede a revelação, os discos que se sucederam à Arte. Virou paixão. E perdura.
O tempo passou, trinta anos se foram. Irmão não tem mais tempo. Irmã se foi e não volta mais. Só se houver outra vida. Mercedes canta aqui em casa, sem o encanto dos vinis e a festa dos irmãos, sem o violão e o canto dos ouvintes acompanhando. Canta nos raros dias de chuva, histórias de luta e de amor. Amor por um povo ou por um homem, uma mulher. Canta forte, batendo o seu tambor, enchendo o ar com sua voz tucumana. Os vizinhos não a conhecem, parecem torcer o nariz para o som, mesmo baixinho, audível só da soleira da porta. Eu a vejo cá e lá, em programas de tv, imagens de arquivo, ou em vídeos na internet, já maltratada pelo tempo. Sua voz ainda forte, no entanto, não deixa dúvida do quão importante foi crescer junto ao seu canto.


sábado, 21 de junho de 2008

O abismo

Nunca conhecera alguém assim. Insondável. Obscuro.
Abismo de mistérios: lança-te e continuarás sem descobrir o que ele oculta. Talvez até quebres o pescoço, na melhor das hipóteses.
Nada explícito, nada dito, e se insinuado, sutil por demais para ser percebido por quem diz demais, por quem vive nu, por quem rasga o peito e estampa nos out-doors da cidade o coração.
"Nunca" se tornara uma constante. Nunca antes tão contraditório sentir assim. Intenso, arrebatador e - como? - conformado, inteiramente à mêrce do acaso. Intenções moduladas, nada será, nada é, nada foi além de encontro. O vaso é pequeno para comportar a raiz. A planta não tem pra onde crescer. E falta a rega. E sobra a poda, auto-infligida.
As canções ecoam na lembrança, uma em particular. Vem inteira a canção das simples coisas. Canta em silêncio: "alguém volta sempre aos velhos lugares onde amou a vida/e então compreende como estão ausentes as coisas queridas/por isso, moço, não partas agora sonhando com o regresso/que o amor é simples, e às coisas simples, as devora o tempo..."
Perigoso mesmo é não viver. Não se lançar. Passar ao largo do abismo.
Lançou-se. Não chegou ao fim. Esbarrou em algo, aportou em nuvem. Subiu leve, leve.
Estranhíssimo. Alegria e tristeza, encontro e despedida, tudo junto, misturado. Nem quebrou o pescoço. Também não conheceu o abismo, que continua lá, na outra esquina da outra estrada, ainda insondável, ainda tentador. Depois do primeiro mergulho, ainda mais que antes.
A próxima página do livro poderia revelá-lo, mas não há nada nela para ler: não chegou a ser escrita.

(dedicado aos escorpiões)


segunda-feira, 16 de junho de 2008

Junho

Vazio de palavras e sons. Um oco sem eco. Por fora. Dentro tudo pulsa, grita, reverbera. Turbilhão. Tempestade. Quisera dizer-lhe todos os desaforos calados. Romper o silêncio. Abolir o não dito.
Entardece e tudo é torpor. Nuvens, tédio, imprecisão. Nada desperta, nada é viço, nada... Nada houve, quase nada. Quase um desenho. Nem chegou a ser. Esboço, rascunho, garatujas no papel que se dissolve hoje em algum lixão da cidade cinzenta de breve inverno. Inverno confuso, estação de mentira, como as outras nela. Nunca verão, nunca completo. Estio e chuvas, calor e menos calor. Sempre assim.
Quisera gritar-lhe toda a sorte de impropérios. Os mais baixos, todos os do repertório elaborado na escola pública, na rua, em casa, todos os que anos de literatura clássica não chegaram a suprimir. E o faria sem rubor. Mas não consegue dizer nada além de perdão, por favor, obrigado, com licença. Bom, muito bom. Adestramento feliz, lapidação quase perfeita. Não fosse pelas marcas do tempo.
Vazio. Surdo. Mudo. Cego. Oprimindo o que quis florescer. Esmagando a promessa de sol. Fugindo da dor. Feliz, feliz. Falsamente feliz. Riso, canto, álcool, planos, livros, projetos...
Entardece na cidade cinza. O amor não vingou. Não vingará. Não existiu sequer para se trasnformar. Nem em raiva, nem em pranto, nem em saudade, nem em lembrança, nem em esperança. Tudo é plácido, tudo normal, "tudo na mais perfeita ordem", como dizia o poeta. "Tudo na mais santa paz".