domingo, 22 de junho de 2008

Mercedes

Eu tinha dez anos quando A Arte de Mercedes Sosa entrou lá em casa. A sonoridade dos tambores e a voz grave, forte, o timbre particularíssimo, causaram estranheza em um primeiro momento. Era um álbum duplo em vinil, capa branca, as letras impressas no lado interno do encarte. A "família engajada" tratou de me guiar nos passos dessa descoberta. E eu bem que quis. Tratei de aprender a cantar todas as músicas, acompanhando o som da vitrola, completando com a leitura de uma língua também estranha até então. Irmão aprendia os acordes de ouvido, passava para a viola, irmã fazia as traduções, explicando todo o sofrimento do ‘pobre povo trabalhador’ e as denúncias cantadas. Aquilo me seduziu, me emocionou, se apoderou de mim, e é certo que influiu diretamente nos caminhos posteriores, na militância política, na opção pelos excluídos, por mais que o discurso hoje pareça gasto e antigo.
Não conseguia não me comover até as lágrimas ouvindo o violino de violin de Becho, pensando nas crianças de Niño en la calle, ou não me indignar junto com o texto de Plegaria a un labrador. Alguns anos mais tarde, aprendi toscamente a tocar Volver a los 17 no violão.
Mercedes é intrigante. Quem conheço que não gosta, dificilmente vai vir a gostar. E para todos os que conheço que gostam, virou vício desde a iniciação. Assim foi lá em casa até o fim do vinil. Entravam com ar de grande novidade, com a ansiedade que antecede a revelação, os discos que se sucederam à Arte. Virou paixão. E perdura.
O tempo passou, trinta anos se foram. Irmão não tem mais tempo. Irmã se foi e não volta mais. Só se houver outra vida. Mercedes canta aqui em casa, sem o encanto dos vinis e a festa dos irmãos, sem o violão e o canto dos ouvintes acompanhando. Canta nos raros dias de chuva, histórias de luta e de amor. Amor por um povo ou por um homem, uma mulher. Canta forte, batendo o seu tambor, enchendo o ar com sua voz tucumana. Os vizinhos não a conhecem, parecem torcer o nariz para o som, mesmo baixinho, audível só da soleira da porta. Eu a vejo cá e lá, em programas de tv, imagens de arquivo, ou em vídeos na internet, já maltratada pelo tempo. Sua voz ainda forte, no entanto, não deixa dúvida do quão importante foi crescer junto ao seu canto.


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