domingo, 28 de setembro de 2008

outros outubros não virão

Um amigo me escreve "rapidamente" - diz - na contramão do seu estado atual, “que a mente não está tão”. Ainda bem que não. SPA - síndrome do pensamento acelerado - atrapalha a vida, tirando principalmente o sono, conforme soube. E ele me fala da greve das palavras, embora despreocupado com esse movimento. "A gente vai alternando aridez e fertilidade, que faz parte" - respondo eu.
E me tenta: “dia desses uma água de coco, sol, areia, vento, calor, corpos sarados e vazios passando...”.

Talvez seja hora mesmo de dar uma perdida por aí, que não agüento mais um dos trabalhos. E quem agüentar o tempo todo levante a mão.

Meio à canseira e ao praquêtudoisso?, semeperguntarem periga sumir num pressionar de rato, mas tem relutado, rebelou-se, feito a voz do dono, de Chico. E vai ficando.

Pra não dizer que não falei de amor, de amor e loucura, de loucuras de amor: velejando, em meio às dispersões da redação do outro trabalho - nada a ver com isso aqui nem com o um que garante o pão - aportei num portal de psiquiatria. Bom porto. Ruim é se encaixar nuns itens que tem por lá, mas a gente sempre se encaixa. Felizmente, não em todos. No compto geral, pareceu-me que escapei de muitos. Não digo ao certo.

Sem bem-te-vi nem cancão-de-fogo, nada de novo no outubro além dos siris sem-par de Abimael nos cumpleaños de Cipa, dos regalos de Orf e The Imperator (tantas canções!) e dos novos números, nada alentadores, nas pesquisas eleitorais. Dá pra reverter? Vamos pra rua! Eu vou.

Ainda esperando ver a luz, Marina no ar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

pão e vinho

Duvidava de loucuras, descrente dos loucos mansos e das fórmulas mágicas.

A vida é um xarope e não dá presente, sabia. Por isso ia buscar, sempre, tudo. Limpava e arava e semeava e esperava. Plantava e colhia e fazia do trigo o pão, o suor molhando a massa, o forno aceso, a lenha queimando, no dia comum.

A vida é comum, comuns somos, todos, todos - constatava: o ritual matutino, a abertura do portão, o beijo nos seus, o trabalho, a rua, os passantes, o mês maior que a paga, as contas empilhadas, a roupa por lavar, a carta para escrever, o carimbo, o ônibus, a escola, o pique, a chuva.

Por isso o despertador tocava todas as manhãs.

Tudo comum, e ainda assim, nada, nada se repete ao olhar mais atento.

Daí o fascínio quando a luz esmorece e começa a se esconder, trazendo um estado d’alma que requer outra existência, tons crepusculares, entidades sutis quebrando a invisibilidade, temas fosforescentes, grilhões serrados, coração liberto, estrelas e sóis e álcoois. Poética e cantos e embriaguez e esperanças e bailados e encantamentos e sortilégios.

Por isso perfumava a tulipa da espiritualidade com essência de acácia, quebrada a de jasmim que viera nos dedos da manhã.

E duas existências se fundiam em uma, onde rotina e transcendência oscilam nos pratos da balança dizendo ser o pão necessário, mas nem só de pão vive o homem e os lírios do campo não cosem nem fiam.

Duvidava de loucuras até que o encanto rompia o embotamento.

Até quando via nos rostos a magia da graça, do riso, quando mesmo o pão não havia. E aprendia, mesmo que um pouco só.

Que um pouco só já fortalece. E ajuda a caminhar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

só um dia

Ainda quis esperar um dia, uns dias, cantando, insistente: ‘pra mim, basta um dia, não mais que um dia, um meio-dia’. Quis, quis tanto que parei de querer pra me perguntar se queria de verdade.

Veio a madrugada enchendo o quarto do calor que não era do teu corpo, a insônia, o sono, o torpor, o susto, o medo, o desejo, a falta, o dia trazendo mais falta, mais ausência, mais calor que não era o teu.

Cantando, sempre: ‘como se fosse a primavera, e eu morrendo’. E querendo viver. E minha vida uma rota, roteiros, umas ruas, uns pés a pé, um carro, uma procura sem fim, do amanhecer à noite, cansada, cansada, casa fechada, cupins em festa devorando meus papéis e eu me perdendo e te perdendo, a cada momento, minuto, a cada dia um pouco mais. E te perdendo entre seios pernas bundas risos sons, molhando madrugadas tuas onde eu distante. E te querendo ainda: ‘me dá só um dia e eu faço desatar a minha fantasia’. E pensando ainda se te quis, te quero, se te perdi sem nunca ter encontrado, se nunca mais vou te encontrar.

E nunca mais é tanto tempo que nem vou estar mais aqui nem você nem nós nem ninguém mais. Mas sei, dentro em mim: não existe nunca mais, tanto quanto sempre não existe. Ainda assim te quero sempre, nunca mais te quero e já nem mais sei bem se quero. Nem o que quero.

Ainda achei que voltarias, voltarás, que não voltas. Em momentos distintos, difusos, à meia-luz, meia-sombra, confundo tudo. E penso às vezes que nunca vieste de verdade, nem inteiro, nem mesmo metade vieste.

A noite agrupa os fantasmas em torno da casa, as sombras crescem, a escuridão lhes dá outras formas.

Que venha o sol, que o hoje me dói, que a noite não tem fim, que as noites tem sido sem fim, impiedosamente sem fim.

Que venha o dia, que espero, cantando, ainda, querendo 'um dia pra aplacar minha agonia, toda a sangria, todo o veneno de um pequeno dia’.

( ' ' : fragmentos de Basta um dia, CBH)


terça-feira, 23 de setembro de 2008

do poder jovem

E é quando a gente menos espera que nada acontece mesmo. Disseram que o mundo acabaria junto com o eclipse lunar, que o rio mudaria seu curso, seguindo do mar à serra, que o mar engoliria essa cidade. Nada, necas nem coisa nenhuma. Ainda. Questão de tempo.

Mileniozinho acanhado, início de século desconjuntado, década atravessada. Conversinha mole de quem já passou, talvez. Que esperar então? Relembro O Poder Jovem, de A. J. Poerner, a juventude nas ruas. A de hoje também, a caminho do show dos plays. Bem outra, esta dos orkuts-messenês-tv-sentaqueédementa. De menta. Sair-dançar-beber-cair-e-levantar e ficar e reficar e a fila anda. E aonde vai mesmo? A fila não incomoda, como nas Autoridades do Capital Inicial: bonecos para brincar. A fila, a massa, nada homogêneo incomoda, que nessa fusão fica fácil brincar de modelar o todo, mais que escolhendo cores pra montar o jogo.

Falando nisso com meu sobrinho Gabriel, estudante, ‘aprendente’, recebi notícias boas. Disse-me que há algo em fermentação, contrariando os que não vêem saída, os que chamam esta de geração perdida. Um povo bom fazendo música e livro e arte, alfabetizando na favela, rompendo o cerco acadêmico, montando biblioteca na periferia, a exemplo do Paço. Timidamente, há algo em gestação, esboço de reação, sopro que se delineia apenas. Se é só oba-oba com estereótipo engajado ou se vão querer redimir um mundo que agoniza, não há como saber. Ainda que por pouco tempo, que ao menos surpreendam minimamente os que agonizam no mundo, dando-o já por perdido.

Quero crer.


rotação

porque já era tarde não te vi
bramir de ave, arrulho de mar
marulho

o sangue no ar da noite,
pálida palavra

água da vida
banha o dia
a sede morna, o bêbado passo

no ar, ensandecido, o grito
olhar da lua agudo

na madrugada longe
poças de silêncio

parto


sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Carta a Antônio 2008.2

Caro Antônio,

Eu lhe disse adeus, uns tempos atrás. E até breve, até um dia.
Até hoje.
É que ontem, no bar, ouvi Praça Clóvis e lembrei de você, do retrato rasgado, jogado no lixo, recomposto milagrosamente, perdido no fundo da caixa de papelão sob outros retratos esquecidos e empoeirados. Você há de me perdoar por isso, eu sei. Tornei pois a arrumar a caixa. Sem danos.
Estive longe, lejos. Nem sequer lhe escrevi um bilhete comemorativo pela passagem de um ano do nosso primeiro encontro.
Foi um julho estranho, este. Muitas chuvas e um sol inusitado interrompendo uma longa espera.
Soube que você andou pela cidade. Como não nos vimos, parabéns para nós agora.
Houve um moço, nesse meio-tempo, você deve saber.
Não sabe é o quanto eu faria pelo amor desse moço. Como não me foi dado fazer com você. Faria mais, confesso, posto que esteve bem junto ao meu coração. Você sabe como amo tortamente, quão fundo me lanço, o quanto me reduzo, agigantando o outro. Como fico piegas, patética, risível, e de tanto me assustar e me encolher, desapareço. Como conosco, tal e qual ocorreu, que as histórias são parecidas, que é difícil arrancar planta sem deixar raiz. Com ele ousei muito mais, despi lágrimas e pudores. E ele se foi.
Tive idéias, chegadas as notícias depois. Nada trágico e ao mesmo tempo, sim. Não pensei em arsênico, curare, estriquinina. Pensei em botox, academia, silicone, curso intensivo de alquimia, elixir da juventude, renew clinical. Mas nada disso era rápido. Nem retroativo.
O tempo é implacável, meu caro Antônio. E leva muito de nós. E deixa muito em nós.
Pensei ainda em mudar de tema, de indumentária, em me aventurar pelo mundo da haute couture, dos scarpins e tallons. O detalhe é que passei da idade, e isso só me faria fútil, não leve. Só me traria arremedo, não sedução. Escolhi o caminho de Baco, que triste não sou.
Voltei aos chorões, revi personagens, bebi do vinho o que suportei. Peço-lhe que desconsidere não termos brindado. Não havia como.
De lá migrei a outras plagas. Saindo, ainda, alguém puxou a barra do meu vestido vermelho. Olhei, ignorei, prossegui até o galpão, levantando poeiras, poeirinhas, poeirão.
Lá, uns jovens. Uns vermelhos. Uns ratos. Uns bons. Um insistente: o da barra do vestido. Olhei melhor. Moço. Belo. Alto. Magro. Olhos negros. Olhar inteligente. Interessante. Interessado. Discurso vermelhoso. Pensei: por que não? Despensei: porque não, que outra imagem me veio à lembrança.
Não esperei o bar fechar, a noite findar nem o povo sumir. Fechei um dos olhos, que a estrada se duplicava, na volta. "Puedo escribir los versos más tristes esta noche" - soprou Neruda.
- Qual o quê! - discordei.
Hoje é um dia novo, escalo as paredes e volto à superfície, inteira mas não intacta. Viva.
Quis lhe contar tudo isso, meu caro Antônio, para voltar a falar com você sobre os abismos. Hoje discordo, em parte, de Paul Valéry. Não é só a vegetação que os cobre que os faz diferentes. Há a profundidade deles também. Afora isso, são mesmo muito parecidos. Ademais, são todos letais. Surpreendentemente, escapamos depois da queda.

Hoje, um bem-te-vi pôs seu papo amarelo na borda da janela, a primavera anunciada em seu canto.
Daqui lhe envio a imagem do bem-te-vi, meu beijo amigo, meus até um dia, até breve.

Maria

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

inverno-primavera-verão

Na janela envidraçada da sala, no breve momento de estiagem, o raio de sol apareceu, desconhecendo a invernada. Brincou com as sombras, afagou a mesa e uns braços nela pousados.
Das nuvens escuras, o vento trouxe mais e mais chuva, até a estação mudar.
Os braços, já fartos do frio, receberam a visita outra vez.
Prometeu a si precaução. Nada de queimaduras. Pra desconsiderar a promessa tão logo o viu, luminoso, tão logo o sentiu, aquecendo braços e o mais ao redor. Pra desconsiderar a promessa e abrir a janela. Janelas. A porta. Portas. A casa inteira. Não aos poucos, que de pouco não era. Expôs pele. Corpo. Sob o peito, o coração, onde ele se instalou. Onde fez pouso, não morada, que as estações sempre mudam. Onde fez festa, algazarra, dispôs encantamentos. E de lá varreu poeiras e certezas. Abriu gavetas. Queimou escudos. Revelou cicatrizes, remexeu-as.
E como aqueceu, queimou.
E como chegou, partiu.
Que havia o chamado lá fora por raios de sol.
No coração antes dormente, tornou-se sonho de calor. Que não era tempobom, tempoainda, tempodeser. Que tempo certo, nunca há.

- Já é primavera - ouviu dizerem. Olhou sem enxergar. Sem pranto, sem riso. Sem saber nem o que tinha sido mesmo, se raio de sol ou temporal.

E com alguma alegria ainda, que quando viesse a perceber a primavera, o verão já estaria pra começar.


domingo, 14 de setembro de 2008

Medidas

Quanto de nós duvida? Quanto acredita?
Quanto arrisca? Quanto hesita?
Quanto desespera? Quanto pacifica?
Quanto esmorece? Quanto excita?
Quanto repete? Quanto improvisa?
Quanto cala? Quanto grita?
Quanto assume? Quanto despista?
Quanto agrada? Quanto irrita?
Quanto acaricia? Quanto atrita?
Quanto enfastia? Quanto instiga?

Quanto passa?
Quanto fica?

Quanto pressente? Quanto delira?
Quanto é ventura? Quanto, desdita?

Quanto verdade?
Quanto mentira?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

do turismo local

Já deu a volta ao mundo sem sair da sua cidade? Se não, é hora de fazer esse tour, imperdível, coisa possível daqui mesmo de Natal.

Ponha os pés na areia d’África, visite os mocambos da África, casas de papelão, palha, taipa, alvenaria até. Umas em pé, outras de banda, escoradas na duna, dependuradas no fio invisível passando rente aos das altas tensões. Banhe seus olhos nas águas da África, fios de esgoto beirando as casas sem calçada ou calçamento, escorrendo, formando gretas depois no barro ressecado do chão. Veja as crianças da África, com seus animaizinhos de estimação, seus cachorrinhos sem petshop, suas pulguinhas de flor de cajueiro, suas facas de cozinha nas brigas de rua. As meninas semi-nuas, muitas, e muitas grávidas nem bem ainda despontam-lhes os seios. Umas dançando, em frente de casa, escutando não Ranchinho de Paia, mas o último hit de Aviões do Forró, o das letras inspiradas em raparigas, cabarés e temas afins. Em dias piores, manhã cedinho, capaz de algum corpo morto em campo de futebol de areia, como já foi dito por quem viu. Como já vi.

Quer conhecer? Logo ali, pertinho do rio-mar, ao lado do Potengi-Redinha, a comunidade da África: sem placa indicativa nem faixa de boas-vindas. Ainda assim, fácil de chegar.

Pode-se também conhecer o Japão. Um imenso labirinto, o Japão. Uma África natalense urbana. Uma Sidi Bou Said mais apertada, pobre, sem glamour, sem badulaques à venda em frente às portas, sem casas brancas de portas azuis. De similares, os sons e as gentes o tempo todo nas ruas-corredores. O labirinto. A gritaria, a balbúrdia, o burburinho incessantes, dependendo da hora do dia. De brinde, uns tiros à noite. A vista para o rio e seus barquinhos de papel higiênico usado, garrafas pet, sacos de lixo, bichos mortos, lama, podridão, passando, encalhando nas margens, oferecendo pasto pros moradores, um pedaço de madeira, um salvado qualquer. E, também, nas casas, na fachada, escrito em cima que é um lar, como na perdida gente humilde de Vinícius de Moraes. Sem varandas, sem poesia, sem flores tristes e baldias.
Acesso pelo vizinho bairro das Quintas. Há outros caminhos. O mais curto é esse.

Há outras opções. Outros lugares do mundo. Há Leningrado, dos assentamentos, como houve um dia a Coréia, dos mosquitos. Só pra falar em cidades e países estrangeiros. Há mais lugares, mas não nos alonguemos, não percamos tempo. Há muito o que ver além da bela Punta Negra. O panorama é que não muda muito, “y la pobreza es la misma/los mismos hombres esperan”, como na milonga de andar lejos, de Daniel Viglietti. Existindo, trafegando pelas ruas de cá, por mais que se os ignore. Esperar talvez seja seu grande mal.

Vale, ver, pois, sua cidade inteira, antes de dizer conhecê-la. E Daniel, que é uruguaio, pode bem ficar no canto dele, deixando o recurso a Caymmi parafraseado: “você já foi a Natal, nêga? Não? Então vá!”.


terça-feira, 9 de setembro de 2008

de labirintos e amortecedores

Tonta. Segunda vez desde a semana passada. Tudo focado, aí um movimento mais brusco, um meio-giro de pescoço mais ligeiro, procurando uma rua, um número, e a rua em frente sai do lugar e demora a voltar mais que sempre. Quase me assusto, aí digo que ela não volta, não a rua, mas a vertigem, de jeito nenhum, nem que eu tenha que voltar a correr, a comer, a parar de fumar. E não volta, que já veio no derradeiro dezembro, durou o mês inteiro, sem álcool, comprimido diário, parede sempre colada com a mão, internação forçada no apartamento vazio, mundo caindo ao redor, em cima, trabalho criando teia de aranha, eu me enredando nela, caindo e de pé, só a impressão. E fui ver o que era: um tal de distúrbio do labirinto. Podia ser o peso do mundo. Podia ser da idade, os triglicérides, o tabaco, podia ser ausência, falta, solidão, doença na família, desesperança, tudo isso acondicionado, parece-me, no ouvido médio, numas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilíbrio embora.

Não gosto de remédio, médico, hospital, cheiro de éter. Nem suporto dor, doença, amofinamento, repouso e similares. Entre os dois ou mais, engoli uma bomba, dizendo: quem lhe chamou de volta? Equilíbrio agora é do que eu mais preciso. E sem tempo pra não tê-lo, xinguei o labirinto até umas horas.

o, e umas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilrar de fumar, comerEntão, evitando olhar pros lados - mas como encontrar os endereços senão olhando? -, fui-me, ruas afora, escutando o sambinha antigo de Vanzolini no rádio imaginário do carro, cantarolando, como sempre, pro pensamento não ficar fazendo eco no côco: "saiu de casa, com o terno tropical/camisa creme, lenço e gravata igual/jantou e saiu satisfeito/antes da meia-noite morreu com um tiro no peito". Sangue, cravo branco, algo assim. Tem música que cola no miolo. Essa quero não - recusei. E não vinha outra.
No caminho, vontade nenhuma, prazer nenhum, todas elas e todos eles. No caminho, a procura difícil: vaga pra parar. Uma só, frente a uma clínica – Holos. Terapia adiada derna de 1912. Agência de viagens ao lado. Qual das duas? Viagem ou terapia? Nenhuma, que o número não batia. Padaria do outro lado da rua, nem pra comprar um sonho. Fechada, às três da tarde. Onde já se viu? Não se sonha mais nessa cidade?
E o endereço, finalmente, não achei. E o barro do bairro já não é mais vermelho, quase ninguém é mais vermelho. Parece que perdeu o significado ou ficou lá atrás, num ponto vermelho da história.
Numas de já que taí deixa ficar, me aventurei mais adentro. Pois não é que a rua ao lado da padaria mudou até pouco? Ainda é de paralelepípedos, nenhum edifício subiu por lá, uns 40% das casas ainda conservam a fachada de décadas. Lembrei que de casa até a padaria era um bom pedaço de chão, e quando estreei a ida lá só, era a própria independente. Falar em paralelepípedos, lembrei também que foi a primeira palavra que o avô, não o meu, ensinou pra neta de um ano que a repetia sem atropelo, só pra contrariar quem não acreditasse. Lembrei do bolo - ô bolo bom! - marrom no meio, branco nas pontas, do cheiro de pão no fim da tarde, da fumaça da lenha no forno da padaria... Hoje não gosto mais de bolo, nada doce, só sal, salgado, bem salgado, café forte, pimenta brava, tempero.
Na casa velha do barro, azul desbotado, santos e fotos de mortos nas paredes, caminhos de cupim, formigas levando o derradeiro embora, ainda um café forte, que vou e encaro, pedindo licença ao labirinto, que não sou bem gente, nem guardo o leito, como no poema de Alex Nascimento que um dia colei na parede do quarto de onde fiquei ausente por bons ou maus treze anos. Tudo no lugar, pois, nenhuma nova vertigem, vou-me, espreitando as laterais sem balançar muito a cabeça, procurar mais cantos pra ir, forçosamente, que hay que trabajar, e vem geraldo, o vandré, entristecendo a cachola de música: "eu vou voltar pra mim/seguir sozinho assim/até me consumir ou consumir toda essa dor/até sentir de novo o coração capaz de amor". E a recuso, também, e a afasto, e me afasto, e faço o percurso de volta, e as ruas já não dançam, e não permito essa cantiga, que fora o labirinto querendo desconjuntar, entro mesmo, estranhamente, é em outra: "socorro, eu já não estou sentindo nada".

"o amor

o amor tece

o amor tece dores

amortecedores"

(Everardo Ramos)


segunda-feira, 8 de setembro de 2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Ser e pertencer

São muitas as questões. Cada passo, um pedaço de caminho. Cada manhã, um desafio. Cada dia, um leão pra matar.
São muitas as informações sem serventia. O que se viu. O que se ouviu. O que se leu. O que se aprendeu (?). O que se instituiu como certo. Válido. Aceitável.
Muitos os papéis que se assume. E as interrogações em sua órbita. Faço, não faço, digo, não digo, sou, não sou, pareço ser. Quem você é, quem você pensa que é, quem somos, quem pensamos que somos, como somos vistos.
Identidade. Pesa aí o onde, como, porque. Quem você é em função de onde vive, de quem lhe cerca, do que lhe formou. Quem você é intimamente, com você e com quem lhe é caro.
Ser. Pertencer.
Alguém é homem, preto, brasileiro, nordestino, trabalhador, cristão, casado, vascaíno, vegetariano, social-democrata.
Alguém é humano. Ponto. O mais se refere a pertencer. Em cada aldeia, uma conduta. Desloque-se esse homem do seu meio. O que resta? O que conta?
Leonardo Boff relata que em um dos seus momentos na prisão, frei Betto queria um espelho, pois sonhou consigo, quando não mais lembrava como era o próprio rosto. E assim chegou à conclusão que era natural isso, pois somos feitos mesmo é para ver o outro. E nos esquecemos finalmente de nós quando reduzidos a nós mesmos, à nossa desimportância, à necessidade de buscar conforto além do nosso umbigo.
Alteridade. Palavra esquecida. Conduta esquecida.
O amor ocidental tem sérias distorções. É egoísta. Possui. Reduz. Aprisiona - pertencer.
O amor em sua essência é libertário. De doação. Partilha. Entrega. Revelação - ser.
No primeiro cabem todas as questões e informações sem serventia.
No segundo, pra quê?
São poucas as respostas. Bom para que se prossiga buscando.

Bom deixar que vivam os leões, que nas manhãs nordestinas, leões só em filme.
Ou em sonho. Tê-los perto é privilégio.

(pensando em M., que me fez querer ver além de mim, buscar o amor maior e me desnudar)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A morte do xamã


"Avô,

Peço a morte

para as partes de mim

que não ouvem

nem falam a verdade,

que são cegas demais para ver.


Avó,

Dá-me a luz de novo,

com o amor como meu guia,

a verdade e a beleza como meu caminho,

sem nada a ocultar."

(As cartas do Caminho Sagrado)

terça-feira, 2 de setembro de 2008

de como se fica tolo e se escreve versos bobos e não se está nem aí quando se está amando

O meu amor
É pura poesia. Em prosa.
É dengo na voz
Nos olhos risonhos
Na boca
macia
de beijar

O meu amor
É altar de sonho
guarida no temporal
Chuva fina na aridez
Viração,
vendaval

O meu amor merecia
Palavras de prata,
Silêncios de ouro,
Nobre que é.

Eu
não tenho mais
que versos de pé-quebrado,
Sextilha, oitavas, quadrões,
Parcelas, toadas, mourões
Martelo-agalopado.

Ainda assim,
me quer.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Como la luna llena

Uma fome, outra fastio. Uma come, outra, jejum.

Na alquimia do fim de mês, o milagre aparece brotando, de onde se pensava nada, pão de queijo, mangaba fresca, leite morno, café quente, cuscuz nordestino. Tudo feito devagar, que a cozinha não comporta duas.

E uma ralha: a outra ri.

Rindo, de manhãzinha, pela alegria da manhã e do encontro, brindando conversa fiada com papo-cabeça.

Uma escreveu sobre a outra, há tempos: “i love her, and i know: she loves me”. A outra capitulou. Como não entender?

A outra nunca escreveu sobre. Sempre para. Bilhetes, cartinhas, cartas, cartões. Postais. De onde estavam juntas sem estar. De onde estavam distantes sem estar.

Uma não queria atropelos, incertezas, desafios, não porque os temesse, mas pelo desinteresse mesmo de sua plácida e silenciosa morada touro-touro. Outra não queria repetir o que já havia: “dame la esperanza de um camino nuevo...”

Uma partiu, voltou. Outra partiu, voltou. Distintas, ficaram um pouco ao partir, deixaram um pouco ao chegar.

O que incomodava, lá bem no fundo, a uma e a outra, era saber de mais uma iminente, derradeira partida. Que as asas brotavam. Que as raízes cresciam. Que a estrada se bifurcava. Outro palco, outros papéis, onde já não estariam como uma e outra. Para aonde viriam outros mais. E tudo era obscuro, assustador, desconhecido e maravilhoso. E se assim era, como não querer?

Como não se despedir do presente com tristeza-alegria? Como não preparar a acolhida do futuro em tons pastéis-lilás-bebê?

Que tudo se reinventa. Que se encena outros papéis. Que o ciclo não se interrompe. Que a vida se recria, se refaz, finda, renasce, gira, passa, volta, mingua. E cresce.

Como Luna. Llena.