sábado, 30 de agosto de 2008

Pastilhas de freio

Era uma discussão interessante. Quem disse o que sobre o que. Porque disse. Os equívocos. Os acertos. As origens (?). As seqüências.

E assisti. E discuti. E refleti. E escrevi. Até não mais querer. Então fui para o mundo. Ver. Queria ver. Ray Charles é cego. Meu pai também. Já era antes de perder a luz dos olhos. Sou hipermétrope. Só à distância vejo bem. E vi. Quase tudo azul, não fosse pelo concreto e pelo – ainda – verde entrecortando o azul. Vi o cinturão de areia na cintura do mar. Duna branca, duna amarela. Asfalto preto, cinza, desbotado. Cidade azul. Cidade veloz. Velocidade minha confundindo as cores.

Mais de hora, indo, vindo. E vendo. Sem nada além do registro da cor e apreensão da paisagem na retina, que amanhã não sei, que retinose é hereditária. Que não herdei, me disse quem sabe. Herdei foi a sede de ver, ouvir, apreender, descobrir. Escapei das sífilis, por um triz. E vi, sem estado alterado de consciência, passado e presente, um no outro, outro no um. Futuro não, que não sou besta. Vi até cansar e querer voltar pras paredes. Minhas? Pra discussão inacabada. Pro abrigo, proteção, pitada de tédio e preguiça junto. No leito, antes do sono, penso na urgência em trocar as pastilhas de freio.

Desperto e me envolve, escapando das dobras do lençol, abafada até então pela visão e discussões do dia, a lembrança de um corpo no meu. Urge trocar as pastilhas de freio.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

do mundo

Há dezoito anos teria sido uma moça como eu fui. Não fosse surda. Muda. Doente.

Não posso precisar que idade tem hoje. Uns quarenta? Talvez menos. Óculos, cabelos curtos, alguma beleza ainda, alheamento, uma sombra de raiva por trás do olhar. Ou de medo. Ou apatia - transfigurada, na minha imaginação.

Teria sido “normal” há dezoito anos? Viria a ter marido, filhos, netos, lar? Trabalharia, viajaria, estudaria?

Não sei quando aconteceu o corte, a ruptura com o mundo. Se vinha do berço ou tinha se dado há dezoito anos.

Na casa pequena, pobre, as três mulheres. Ela, a mãe, a filha. Ela sem falar, sem ouvir, olhar fixo em mim, sem parecer ver, entender nada.

A filha, olhos inteligentes, aparelho nos dentes, sorriso sem alegria, explicando: - assino por ela. Respondo por ela. Vou pra universidade, estou no pré-vestibular. Ele vai ter que pagar, de algum jeito.

Não era o pecado que morava ao lado, mas o perigo que morava em frente.

Estupro. Há dezoito anos. Demência. Causa ou conseqüência.

E saí pensando nos trituradores de sonhos. Na moça que não tinha sido feliz, como um dia fui. Na outra moça, que nunca mais será feliz como um dia fui.

No mundo, que é assim mesmo, que sempre foi, que talvez nunca deixe de ser.

E sabendo ser assim mesmo, segui pensando em por quais motivos ainda me dói.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

da alfabetização

Alfabetizada em casa, como por brincadeira, aprendi a ler cedo, antes dos cinco.

Aprendi bem tarde a ler nas entrelinhas.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

dos arcanos III e IV

Chuva demais alaga, mata. Água = emoções, copas.
Amores vêm, amores vão(s)(?).
“Se você pensa em desistir de mim, baby, é porque já desistiu” - ouviu um negócio desses uma vez. Disse um parecido.

Os oráculos só falam aos que sabem interpretar seus sinais.
Ruim de interpretar sinais, reconhecia. Reações tardias. Auto-proteção?
Primeiros momentos: em êxtase. Quando em xeque: espinhosa, contida, contendo, até regurgitar dores e medos. Depois: anestesiada, dormente. Seguindo: um turbilhão. Fogo esterilizando a terra até a recomposição do solo. Outra vez.
Em carne viva, nua, aceitou.

Pôs a mesa, queria o quê? (e a tinha posto para si, jurava, saudosa de si que estava, querendo o reencontro com a parte perdida, adormecida, latente) Vieram os famintos, os curiosos, os lobos, o louco, o enforcado. Recusou-os. Veio o Imperador, de passagem, em visita, que era ele de outro império. Veio o Imperador, na maratona talvez-sim-não dos signos de ar.
Estaria à altura, ela? Quem era ela, além das suas contradições e do seu sentimento de inferioridade - parceiro constante e fiel?
Júlia discordava, era preciso não esquecer. Júlia sabia ler sinais. Por isso a consultava, há algum tempo, alguns anos, uma vez por ano. E Júlia tinha lido que era uma Imperatriz.

Para o que for. Podia ser pouco, nada. Engano, isso, em se tratando do Imperador. Tudo menos pouco ou nada.

Nas armadilhas do pensamento, nas armadilhas das emoções, o sopro, que não sabia se intuitivo ou medroso: devagar. Sem se desviar. Continuando a peregrinação do louco, até o fim do caminho.

Como quem pondera não delira e a caixa de chá estava vazia; como por hábito; guardou nela as elucubrações todas, pragmática, com a costumeira compartimentalização de Virgo. Afinal, não vivia em função de tais questões. Talvez por isso a atordoassem tão intensamente quando lhes permitia um espaço no dia. Listou as tarefas, ficou para fazê-las, saiu para fazê-las, intimamente esperando o fim. Do mundo.

Ou talvez nada disso, que o ser trágico não é atributo de um só.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Quando nos vemos

Nos vemos. Duas palavras. Só.

Nos vimos, uns tempos aí, e pouco ou nada nos dissemos, e passamos, e nos perdemos, e nos guardamos, sem saber, talvez, em algum lugar, pra algum tempo futuro.

Nos vimos, por fim. E nos quisemos. E nos deixamos querer, sabendo que fácil não seria.

Hoje, perambulo pelas ruas da cidade vendo tudo, vendo nada, estando nela e além. E volto pra casa, onde a solidão é boa, o cansaço é bom, a lembrança é melhor, a expectativa alimenta a noite e o dia que vem, que não parecerá só mais um dia, ainda que só isso seja. E vibro, e pulso, e sinto, e quero, mais, e mais, mesmo sem saber ao certo o que, nem se temendo ou não. E sonho encontros e palavras e sabores e cheiros e gestos e jeitos e toques e carícias e mais. E risos e mais.

E o peito taquicarde, que fumo cigarros de outra marca e vasculho fragmentos da sua vida e reviro suas gavetas, tentando assim aproximar o meu caminho do seu.

Nos vemos? Futuro. Alumbramento, promessa, magia, um mundo novo, imenso, ainda que em breve tempo, de sol aquecendo. Porta entreaberta por onde quero entrar e me perder, e me encontrar, e não sabendo muito bem o que fazer, não pensar , demais.
Que tudo o mais me parece nada quando nos vemos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

sobre Ceres e padrinhos

Tradição do interior, os padrinhos, nos tempos de antanho, quando vim ao mundo, deveriam ser “pessoas importantes", para que garantissem aos afilhados um futuro, em lhes faltando os pais. Os donos do curtume da capital, ou parentes próximos destes - não me dei o trabalho de averiguar - foram escolhidos para desempenhar junto a mim esse papel. Não me lembro de tê-los visto no dia do batizado, nem de ter chorado. Para brindar minha entrada na comunidade Católica e Apostólica Romana, onde nunca cheguei a entrar de fato, deixaram-me brincos minúsculos, de ouro e água-marinha, que nunca usei, que não tinha furos nas orelhas. Ela tinha dez anos e me apresentou a eles na pia batismal. Virou, pois, madrinha de apresentação. Na falta dos titulares, e por vê-la diariamente, findei abolindo a apresentação e chamando-a de madrinha, tão somente. Bela e miúda, cabelos longos, escuros, pele clara, fartura de sorrisos, doçura sem fim, força e bravura idem, voz limpa, clara, de cantar bonito, mania de registro das cantigas em cadernos de música que as mocinhas da época mantinham, por obrigação, de páginas que decorei um dia.

Mãe, cansada dos seus muitos anos e muitos filhos e muitas tarefas, não tinha muito tempo. Ela então me adotou. Os meninos-irmãos sabiam ser maus quando queriam. Mas nem sempre podiam, que estava lá, a desafiá-los, valente, que aqui ninguém encosta.
Mostrou-me o mar pela primeira vez. Levou-me ao circo pela primeira vez. Entregou-me o primeiro troféu, de folhas, quando tive a primeira coragem de vencer o medo da queda e escalar os galhos mais altos da goiabeira do quintal. Leu comigo e para mim os primeiros livros, me embalava na rede cantando, me levou a ver o primeiro filme em preto e branco - Dio, come ti amo. E também o primeiro colorido, no Rio Grande, que me deixou por meses sonhando com o mar dos Dez Mandamentos recuando ameaçador, pronto para nos engolir a todos ao retornar.
Pés descalços para não ser percebida saindo de casa à noite quando ia vender jornal Movimento, ou para reuniões secretas - para “preparar a revolução”.
Pés descalços porque livre, desejosa de sentir sob eles o chão da rua, de perambular cantando pela noite, qual flautista de Hamelin encantando ratos. A fieira de aprendizes deslumbrados atrás - nosotros.

Pai bravo, ela desabrochando, excesso de nãos e apelos externos para a vida, já trabalho e universidade, amigos e desejos, futuro e presente, saiu do mundinho do bairro e vizinhas para fazer seu caminho. Senti. Chorei. Mas não queria que voltasse, que sabia que não era bom ouvi-lo dizer que não me responda, que não me olhe de frente, que furo seus olhos de cascavel, que não me desafie que sou seu pai e me respeite senão... E o cinturão de couro estalava, nos braços, nas costas e na platéia que risse, se opusesse, protestasse, chorasse junto. Não importava. Severo. Assustador. Seis anos voaram depois que se mudou de lá, a contragosto do pai, que a renegou por essa decisão. Nos três primeiros, sempre vinha às escondidas, nos ver, me ver. Depois abertamente, que o gelo quebrou com o surgimento do "companheiro", que moça direita não mora longe dos pais sem ser casada. E derreteu de todo com a chegada das crianças, enchendo a casa e desmanchando o siso do avô de cinturão gasto pelo tempo e uso. Seis anos voaram depois que se mudou. Em um dia de setembro - soube mais tarde que andava triste - saiu e não voltou mais. Sem notícias, a peregrinação por hospitais, instituto médico, desespero, dor. E constatação: não voltaria mesmo. Ficaram seus discos e livros, sua voz e palavras, sua beleza suave e pequena na lembrança, uma saudade sem fim, um buraco no mundo, no presente, no futuro. Ficaram seus filhos. E tudo o que me ensinou e não me esqueço nunca mais: “aprenda a repartir, não seja nunca egoísta, que os egoístas acabam sozinhos”. Como não acabou. Na despedida, muita, muita, muita gente. Nunca teve posses, como os “padrinhos” titulares. Nunca foi ausente. Nunca saiu do meu amor. Tinha eu dezessete anos quando vi pela última vez minha irmã, minha madrinha de apresentação.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Tarot


“Ilusão, ilusão, veja as coisas como elas são/a carroça, a dama, o louco, o sim, o não...”
A mesma canção de fundo de quando ela se foi, há 23 anos, o porquê de nunca mais tê-laS escutado.
E também nunca mais tinha tirado do lenço de seda preta o tarot de Marselha.
O conselho: um pouco de loucura. Quando, na mesma mão, o eremita, paradoxalmente, fala em prudência, sabedoria, discernimento.
O sol passado, o diabo presente, o carro futuro. Vigor. Tentação. Intuição.

Desatenta, sob o impacto, perdi o compasso das horas e não procurei saber mais quando deveria. Perdi o óbvio, teci estrelas. Despertei desnorteada, que fatos novos tudo mudam.

Mantenho a calma, o encanto, a vontade de rever, ouvir, falar, revelar, descobrir. De tentar sublimar o que sobra. E beber do possível.

Guardo novamente o disco e o baralho. Ambos de enorme inutilidade quando a vida "é real e de viés”.

Jampa

SPA, SPI. Olheiras e olheiras. Síndrome do pensamento acelerado, síndrome da perna inquieta. Duas horas e meia de sono, ansiedade à flor do esôfago, vigília até amanhecer. II, que não é parte II, mas insônia intermediária. Clareou e nem queria, mas é o jeito ir. Ela me espera, bonachona – será que dessa vez ainda? – dedos afiados para puxões de orelha. E eu bem queria ter coragem de dizer que cansei, que me enchi, que desisto, que pra que é que eu quero um pedaço de papel?, que não consegui mais fazer nada que se aproveitasse minimamente ou estou ficando mais crítica ainda comigo - e nem sei se mais é possível - que ela se enganou, que não tenho disciplina, nem tempo, que deprimi, me apaixonei, e aí não rolou, e desapaixonei, e tô achando que vai acontecer de novo, ou não, ou já aconteceu mas estou negando - a faca entrando e eu negando, que onde já se viu, se nem sei quem é? e dos dezoito anos nem mais vejo a cor! – que me dispersei e perdi o fio e me enrosquei na meada inteira...

O diabo é que me afeiçoei a ela, às suas bochechas rosadas, a tudo que me ensinou e ensina o tempo todo, sem falar, só vendo como ela é e vive e faz e não pára minuto nenhum no auge dos seus mais de sessenta e por isso tenho que prosseguir e aí me violento, e me descabelo, e ainda lhe dou alegria, prometo, um dia, não lhe decepciono, ganho um abraço arrochado, boto meu canudo dobradinho no bolso, deixo de obedecer ordens de filhos da puta, vou fazer o que gosto, e só em pensar assim já tá valendo a pena tomar banho de chuva, dormir na estrada, percorrer sei lá quantos quilômetros e voltar. Orientadazinha da silva. À bientôt.

domingo, 17 de agosto de 2008

do presente

Ri com os olhos, miúdos, nadando nos meus
Sonha sonhos onde quero estar
Emprestou-me umas cores pra eu brincar de fantasia
E me disse tanto, e me disse pouco,
e me deu de presente um raio de luz
que colei na porta da entrada de casa
E me mostrou uma estrada que desconheço
um caminho pra onde olho e não diviso medo, dor ou escuridão
por onde não sei se vou, não sei se vai, não sei se vamos,
mas que é sempre um caminho novo
que leva a um mundo novo
pois que sem luz, brilho, cor, doce, sal,
pois que sem poesia e sonho
não há vida que valha
não há rota possível
Há pouco eu não tinha nada incomum
hoje, tenho um segredo
e mais não quero
há um menino cujas mãos desejo entre as minhas
há um caminho que com ele seguiria
há um sonho, e por ele, me refaço e refloresço.

sábado, 16 de agosto de 2008

do medo


Forçou a fechadura, abriu a gaveta e saiu. Foi se aproximando devagar, esquivo, até que se acercou do coração e penetrou inteiro no corpo dela. E o pensava dominado, até então. Enganou-se. Contrariada, quis saber como o permitiu, como não o viu chegando, ameaçador, como não saiu correndo, como não fugiu a tempo. Pensou em afogá-lo com álcool e fumaça. Não ia adiantar. De algum modo sobreviveria e ressurgiria depois, persistente. Pensou em ceder, mas não era do seu feitio, nunca tinha sido.

Observou-o detalhadamente e viu o quanto era fraco, acanhado, insignificante mesmo, o medo que fugira da gaveta.

“Eu ainda te procuro, pelo amor, pelo futuro/Me recuso a desistir de ser feliz” – disse a canção no rádio. Cantou junto. Baixinho. Mais alto. Gritando. Foi aí que o viu - o medo - murchando, minguando, encolhendo. Até desaparecer.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

do despertar

O frio já durava, e a vida, esquecida lá fora. Pela trama da coberta via o mundo. Pálida, morna, quieta, à espreita de não sabia o quê. O vestido vermelho mofando, esperando, no guarda-roupa.

Pensou no tempo precioso despendido. Nas horas mortas. Silenciosas. Ensurdecedoras. Líquido e sal vertidos. Estradas não trilhadas durante a escuridão. Poemas queimados, retratos guardados, canções caladas, desencontros. A poesia de Federico embalando uma tristeza funda no dilúvio da cidade nordestina .
À noite, um morcego entrou em casa, desnorteado, deu voltas pela sala, enveredou pela porta do quarto, escolheu a janela fechada, aquietou-se. Sinal? O susto rompeu a letargia. Expulsou-o, apavorada, sem ter por quem chamar. Fechou de novo a porta.
Pensou então nos porquês todos e na ausência de reações por tanto tempo. Pensou que o mês findava, a estação findava. A desesperança teria que findar também.

Amanhecendo, quis um novo caminho. Promessa de primavera se avizinhando.
Abriu primeiro as janelas. Depois as portas. Deixou o sol invadir a sala, a casa, a alma. Correu os olhos em volta, dobrou o medo, guardou-o na gaveta, trancou-o à chave. Soltou os cabelos, respirou longo, tomou uma dose de bálsamo do tempo, pôs o vestido vermelho. Sem hesitar, ganhou o mundo, que a vida real se impunha. E desejou-a inteira e intensa, que não havia nada a perder.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

da partida

A saudade é parafuso. Trem de metrô. Tema recorrente. A saudade é um avião indo embora.
A ausência é um soco na boca do estômago.

Ele me disse que haviam dois: o que existe; o que eu inventei.

E eu queria um minuto do primeiro. Bastaria. Um riso. Um oi. Um olhar. Um abraço. Um momento para aplacar a falta. Pra desenevoar os olhos. Pra fazer voltar o brilho. Contento-me com pouquíssimo, quando mais não há. Apenas futuros bons amigos.

E eu queria tudo do segundo. Risos. Poucas palavras. Calor de corpos em mistura nossa. Enlaçar de línguas, confusão de pernas, reencontro de pele, espaços mínimos entre nós. Seiva, sem lágrimas. Gozo e suor. Fome saciada. Silêncio bom. Sou ambiciosa quando é possível.

Quando o mundo cai, perco tudo. Esqueço, não dou atenção a chaves, carteira, telefones, guarda-chuvas. Uns doidos amigos meus da Física me falaram de um universo paralelo pra onde vão os objetos perdidos. É o universo das coisas desaparecidas - uma boca de buraco negro onde elas ficam gravitando até serem sugadas pra dentro, e aí, já foi. Nunca mais. Por obra da atração desse universo sobre as tais coisas, perdi telefone. Por obra da dor de cotovelo também. Calha de eu beber demais quando dói. Calha de eu perder objetos quando bebo demais. Aliaram-se os dois - o universo e a dor - na sabotagem. Por obra desse encadeamento de reveses perdi de ouvir a voz dele. Talvez de vê-lo.

Talvez ele nem quisesse mesmo, de fato, aí tudo caiu como uma luva. Juntou a falta de fome com a vontade de não comer. Depois se foi. E depois não há. Ou há. Não sei. Com ele nunca sei. Só estou. Espero. Disponho-me. Sinto. Preciso. Quero.

Um dia não vou querer mais além do primeiro. Ele deve esperar por isso. Ou nem pensar, também não sei. Se sim, poderemos nos ver mais, rir juntos de tudo e de nada, de coisas corriqueiras, de coisas sérias. Ser amigos, talvez.

Hoje ele pensa que eu complico. E eu sei que sou descomplicadíssima. E fico imaginando como seria a situação inversa. Em como lidaria com ela se tivesse nas mãos o domínio da história. Acho que eu seria boa. Como acho que ele é bom.

Gosto do primeiro, do que existe, de quem conheço pouquíssimo, como diz. Mesmo sabendo que não se tornará o que inventei. Que não há caminho para nós. Que não há a contrapartida do querer.

Hoje se foi sem que eu o tivesse visto. A cada minuto, mais se distancia. A cada milha, mais dói. As olheiras aumentam - acúmulo de noites insones de olhos lavados – e não tenho mais fome.

A ausência é um soco na boca do estômago.

Aconselhável é não esquecer que vai passar.

“A saudade é um trem de metrô.
Subterrâneo obscuro escuro claro, é um trem de metrô.
A saudade é prego, parafuso.
Quanto mais aperta, tanto mais difícil arrancar”.
(Zeca Baleiro)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

minha casa

nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda

quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas
(Baleiro)

Natal hoje me faz pensar em Macondo.

Aí desisti de pegar a estrada molhada, provavelmente esburacada, pra ficar onde preciso estar: aqui. Pra ficar com quem quero estar: comigo. Não quero ser estanque mesmo, daí faço estrada em minha casa e por ela sigo devidamente protegida de chuvas e intempéries outras.

Não é tão comum, mas amanheci me querendo um bem danado. Faz frio, chove, o dia podia estar uma chatice. Não está. Estamos, eu e uns papéis e livros, em estado de enamoramento. Criando intimidade, cumplicidade. Reconciliamo-nos, faz um tempinho.

Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, minha avó não o dizia, mas poderia ter dito. Então, nesse primeiro tempo do enlace, deles só recebo. E eles querem dar. Há aí, pois, um acordo. Depois decidimos o que fazer no segundo tempo.

Com água demais, umidade demais. Tudo mofa, o que não chega a ser um problema: depois tudo enxuga e refloresce. Aí sim, nos arrumamos e caímos na estrada, estilo Novos Baianos, 'que o mundo é oval e a vida é uma'. Ou nos largamos um pouco, deixando previamente acertado o reencontro, que minh’alma setembrina precisa de um mínimo de programação e expectativa.

Racionalmente bem, pois, contesto os esotéricos de plantão, a relacionar sempre as emoções com o elemento água. E dou fé.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

De fantasmas

Em um desses dias que o sol não aquece, uma dessas manhãs em que a cabeça se recusa a pensar, decidiu sair à procura. A noite insone, de assombrações espalhadas pela casa revirando coisas, empurrando portas, semeando sombras, acentuou-lhe as olheiras. Na manhã tardia, de luz ferindo os olhos, o vento era escasso e o tempo incerto. Vestiu-se apressado e seguiu.

Parecia que pra todo mundo tinha sido assim também, aquela noite. Na rua, ficou sem saber, dos poucos passantes, se eram vivos ou os mesmos fantasmas da véspera. Desceu a ladeira parando nas esquinas, indagando dos muros, dos últimos vigias sonolentos, onde poderia encontrar. Subiu a avenida, pegou a estrada principal, sempre olhando as calçadas, procurando um rosto, uma pista, um sinal. As casas passando, oficinas, farmácias, botecos, oscilavam entre hostis e desconhecidos. Só as árvores enfileiradas num dos lados do caminho traziam algum conforto. Foi assim a passagem até chegar ao velho bairro. Nele tudo estava diferente. Nada das construções primeiras, dos primeiros moradores, das casas de muro baixo, das cadeiras nas calçadas. Nenhum rosto conhecido, que se porventura remanescente, hoje se resguardava, protegido por cerca elétrica qualquer. O vendeiro era outro, os vizinhos também. Nada por lá.
Fez o caminho inverso, confuso.
De volta à casa vazia, encerrou a busca.
De quem ou do quê nunca soube. Talvez de consolo, perdão. Talvez de alguém que um dia deixou. Talvez de uma vida que ficou para trás: vozes amigas, calor, certezas, alegrias; de tempo bom que não volta mais.
Chamou a faxineira, apressado. Mais que hora de varrer dali a poeira dos anos e expulsar os fantasmas. De vez.

domingo, 3 de agosto de 2008

Palavras

Eu já o tinha visto, muitas, muitas vezes, o moço bonito.
Nem tão simpático, tampouco o contrário. Aparentemente recatado, meio tímido, meio distante, meio blasé.
Tinha pressentido algo mais, um pouco do profundo aflorava da capa. Sutil. Foi há tempos. E foi só.
Sumiu. Esqueci.
Um dia, fortuito, ele voltou diferente. Meu olhar também. Comecei a esmiuçá-lo, invasiva, loba em êxtase com a fartura do banquete oferecido. Vísceras em exposição, vi-o, em parte, pelo avesso. A partir de dentro. Daí me agradou, e me agradou em profundo. Devorei dele o que pude. Esclareço: palavras - eram palavras – e nelas, alma e dor, vivência e gozo, invenção e memórias. O mais não perdeu a beleza, mas não foi o que ali, naquele encontro, me manteve atenta.
Ficou então fazendo parte dos meus dias. Uns tempos, amiúde. Noutros, espaçadamente. Noutros mais, ausente, ressurgindo depois de quando em vez. Integrei-o às minhas próprias palavras, agradecida. Tema. Canção. Idéia.

Gosto das trocas. Das boas. As que somam. Quis retribuir mas não sabia como. Não havia muito o que eu pudesse dar. Era um tempo sem luz, denso e de despedida, e ele me dizia que a dor não é privilégio de alguns. Meio fênix, meio otimista, andei buscando veredas para sair do escuro. Só pude oferecer o que tinha à mão no momento, pelo tanto que ele já havia me dado: palavras.

Mas em verdade, em verdade, confesso: ainda quis dele também, de quebra, um outro olhar.