Mãe, cansada dos seus muitos anos e muitos filhos e muitas tarefas, não tinha muito tempo. Ela então me adotou. Os meninos-irmãos sabiam ser maus quando queriam. Mas nem sempre podiam, que estava lá, a desafiá-los, valente, que aqui ninguém encosta.
Mostrou-me o mar pela primeira vez. Levou-me ao circo pela primeira vez. Entregou-me o primeiro troféu, de folhas, quando tive a primeira coragem de vencer o medo da queda e escalar os galhos mais altos da goiabeira do quintal. Leu comigo e para mim os primeiros livros, me embalava na rede cantando, me levou a ver o primeiro filme em preto e branco - Dio, come ti amo. E também o primeiro colorido, no Rio Grande, que me deixou por meses sonhando com o mar dos Dez Mandamentos recuando ameaçador, pronto para nos engolir a todos ao retornar.
Pés descalços para não ser percebida saindo de casa à noite quando ia vender jornal Movimento, ou para reuniões secretas - para “preparar a revolução”.
Pés descalços porque livre, desejosa de sentir sob eles o chão da rua, de perambular cantando pela noite, qual flautista de Hamelin encantando ratos. A fieira de aprendizes deslumbrados atrás - nosotros.
Pai bravo, ela desabrochando, excesso de nãos e apelos externos para a vida, já trabalho e universidade, amigos e desejos, futuro e presente, saiu do mundinho do bairro e vizinhas para fazer seu caminho. Senti. Chorei. Mas não queria que voltasse, que sabia que não era bom ouvi-lo dizer que não me responda, que não me olhe de frente, que furo seus olhos de cascavel, que não me desafie que sou seu pai e me respeite senão... E o cinturão de couro estalava, nos braços, nas costas e na platéia que risse, se opusesse, protestasse, chorasse junto. Não importava. Severo. Assustador. Seis anos voaram depois que se mudou de lá, a contragosto do pai, que a renegou por essa decisão. Nos três primeiros, sempre vinha às escondidas, nos ver, me ver. Depois abertamente, que o gelo quebrou com o surgimento do "companheiro", que moça direita não mora longe dos pais sem ser casada. E derreteu de todo com a chegada das crianças, enchendo a casa e desmanchando o siso do avô de cinturão gasto pelo tempo e uso. Seis anos voaram depois que se mudou. Em um dia de setembro - soube mais tarde que andava triste - saiu e não voltou mais. Sem notícias, a peregrinação por hospitais, instituto médico, desespero, dor. E constatação: não voltaria mesmo. Ficaram seus discos e livros, sua voz e palavras, sua beleza suave e pequena na lembrança, uma saudade sem fim, um buraco no mundo, no presente, no futuro. Ficaram seus filhos. E tudo o que me ensinou e não me esqueço nunca mais: “aprenda a repartir, não seja nunca egoísta, que os egoístas acabam sozinhos”. Como não acabou. Na despedida, muita, muita, muita gente. Nunca teve posses, como os “padrinhos” titulares. Nunca foi ausente. Nunca saiu do meu amor. Tinha eu dezessete anos quando vi pela última vez minha irmã, minha madrinha de apresentação.
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