quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Redirecionando

Como me perguntaram, e para quem não viu o aviso no meu perfil aí embaixo, lado direito da tela e desta página, esclareço que ando escrevendo, desde que me aposentei daqui, neste novo endereço aqui.

abraços e beijos e até,

Márcia

terça-feira, 21 de outubro de 2008

No mais...

estou indo embora.

Sem bloguicídio, sem exclusão.

Se me perguntarem, respondo. Por e-mail: mgp1967@gmail.com

‘Semeperguntarem’ cumpriu sua função terapêutica. Hoje me deu alta. Parto pro hospício real, a vida deládefora. Escrevendo outras coisas. N'outros cantos. “Outras palavras – nada dessa cica de palavra triste" etc, já dizia Caetano.

Agradeço as visitas dos meus irmãos de sangue: Márcio, Marcos. Amo vocês, sempre.

Às minhas amigas e amigos - irmãs e irmãos de alma: Alci, Aninha, Aninhaflávia, Evinho, Christian, Sandro, Renato, Hilminha.

Aos demais visitantes, não menos queridos. Poucos e bons que doaram um naco do seu tempo a essas leituras tão vãs e a essa partilha tão importante pra mim: Julinho, Oswaldo, Júnior, Roberto, José Correia.

Ao décimo-sexto leitor, artesão da palavra/poeta/escritor, texto primoroso, midc, que atendendo um meu pedido, deitou generosamente seus olhos por cá.

Um pedido de perdão pelo sumiço dos comentários, sacrificados, não por querer, no derradeiro bloguicídio.

Saúde!

Santé!

“Eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade e a leve impressão de que já vou tarde...” (Chico/Francis)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Amor, então


Amor, então,
também acaba?
Não que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

(Paulo Leminski)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

E então, que quereis?...

Fiz ranger as folhas de jornal

abrindo-lhes as pálpebras piscantes.

E logo

de cada fronteira distante

subiu um cheiro de pólvora

perseguindo-me até em casa.

Nestes últimos vinte anos

nada de novo há

no rugir das tempestades.


Não estamos alegres,

é certo,

mas também por que razão

haveríamos de ficar tristes?

O mar da história é agitado.


As ameaças e as guerras

havemos de atravessá-las,

rompê-las ao meio,

cortando-as

como uma quilha corta as ondas.


(1927)


Vladímir Maiakóvski

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

de cajus e recidivas

Outubro, outono no outro hemisfério, e aqui, dizem, primavera. Só pra repetir o tema.

Chuva dos cajus lavando ligeirinho umas manhãs nostálgicas que vêm montadas na velha canção de Roberto: “mas o meu silêncio foi maior e na distância morro todo dia sem você saber”.

A distância.

O silêncio.
Há quem não saiba conviver com ele, me disseram. Há quem necessite dele.

Cá do meu lado, fico no meio-termo, este sim, pra mim, de difícil convívio. O caminho do meio, o equilíbrio, a escolha do sábio. Nem fiz retiro budista, nem faço meditação, nem domo os meus bichos. Nem pretendo. Nem tão cedo, pelo menos.
Aí soa estranho. Vazio. Nada mais que palavras.

Paroles, paroles, paroles.

Ainda me doem umas dores. Velhas, embora recentes. Chegam mais espaçadamente. Demoram menos tempo. Recolhem-se sem muito alarde.

Veloz na vida, lenta no sentir, no passar, no esquecer. Há quem seja o contrário.
Ligeiramente en retard, penso em tentar “a cura pelo fogo. Chamas em lugar de lágrimas”. A receita até que seria uma, mas lágrimas não há, José. E agora?

A mim, ruim de pose, resta tentar a pose dos resolvidos, maduros, racionais, objetivos, alegres e satisfeitos. E já me perdoando, por ser ela, em parte, verdade.

Será de todo, posso apostar, quando chegar o silêncio bom. Espero, ainda antes do fim da safra e das chuvas dos cajus.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

do que se foi

E eis que o tempo nos engole e não nos sabemos mais. Perdemos horas, dias, trens, passagens, direções. Perdemo-nos do que somos, do que fomos, do que seríamos. Deixamo-nos para trás em alguma rodoviária, velha angústia, dúvida, descrença, algum desconcerto, ranço, travo, amargor, aeroporto.
E eis que passamos e já não somos. Buscamos, por vezes, o que porventura ainda esteja, resista, persista, permaneça. O que possa trazer de volta um sonho antigo, uma esperança: o veleiro não construído na mocidade, os portos aonde nos levaria, as viagens sem fim, o mergulho sem volta dentro de nós, a profusão dos abraços que aqueciam os dias e as almas em tempo ruim.
E eis que temos ainda sonhos, mas do que tínhamos, o que ficou? Onde aquele brilho e doçura, aquela força, a fé inquebrantável no futuro, aquela vontade de ir além, e muito, e sempre mais? Onde aquela alegria genuína, não parva, brotada do saber do leque infindo de possibilidades mesmo diante das noites mais escuras? Onde o sorriso largo, o perdão?
Sem saudosismo, por vontade de resgate, cabe perguntar.
Talvez guardados no baú do quarto, hoje aberto apenas para a retirada das farpas de que lançamos mão para nossa “proteção” quando a guerra é declarada - o que se dá, quase sempre, de dentro pra fora.
Poderíamos ter sido muito, muitos, tanto, tantos mais. Podemos ainda querer, seguir, tecer uma manhã luminosa, um doce, um sal, um amor, uma certeza, uma lágrima alegre, uma boa busca, um cruzeiro, uma revolução, uma utopia, uma fraternidade. Como pudemos outrora.

Mas nos dispersamos.

“Nesses tempos de barbárie, qualquer canção de amor torna-se uma canção engajada” (Renaud)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

sábado, 11 de outubro de 2008

bons conselhos

Se eu fosse nascer de novo e pudesse escolher como seria, ia querer ser uma mulher burra. Razoavelmente burra. E bela. Suficientemente bela. Não que essa questão tenha lá alguma importância. Mas o médio nos dois quesitos, beleza e inteligência, ao fim e ao cabo, atrapalhou-me um pouco a vida amorosa.

Fiz um balanço dela porque passei dos 40, fui avó recentemente, e isso me meteu na cabeça caraminholas, por uns motivos, dentre os quais:

- a alegria dessa novidade tardou bem uma semana;

- a ficha do tempo passando caiu de vez.

Talvez o segundo motivo tenha causado o primeiro. Talvez seja uma grande bobagem, já que é pra saber que a gente passa mesmo. Mas não se acredita muito até dar-se conta de, o que nem sempre é tranqüilo, que o digam todos os relatos sobre a tal crise da meia-idade.

Pois bem. O balanço me fez pensar que em sendo bela, poderia adotar o comportamento que antigamente-diadesses neste município era considerado tipicamente masculino, na prática, mesmo por quem mascarava os julgamentos&falatórios com o discurso beauvoiriano.

Em sendo burra, não assustaria nenhum eleito, que entraria na mesma proposta, sem grandes, médios, nem menores dramas.

Como tal não se deu e outra vida não há, segui pensando, matutando e insistindo teimosamente em acreditar no tal do amor. Vezemquando desacreditando.

Meio ao balanço e a um papo sobre o desacreditar, um amigo me aconselhou a ser mais burrinha, sob pena de em não sendo, padecer sempre no tema. E disse mais: nunca vá com muita sede a nenhum pote.

Como não me deu as fórmulas nem lhas pedi, continuei sem saber como fazer pra adotar os conselhos recebidos.
Daí que nas raríssimas vezes em que encontro um bom pote, além de ir a ele com muitíssima sede, geralmente tropeço, feito a moça do leite, que de tanto sonhar no meio do caminho com o que faria com o dinheiro quando o vendesse, acaba deixando o bicho cair e pondo tudo a perder. E lá foi o leite escorrendo pelo chão, o pote quebrado de vez, que em ser de barro, cola nenhuma remenda mais.

Então decidi, a bem da felicidade e segundo uns indianos, montar no rato – o desejo – para que não me domine, mas seja dominado. E viver, apenas. Disse isso a esse amigo, não sem tirar o velho e bom Chico do bisaco pra complementar: "hoje tenho apenas uma pedra no meu peito e exijo respeito, não sou mais um sonhador/Chego a mudar de calçada quando aparece uma flor e dou risada do grande amor". Mentira!

de pontuação, por Xico Sá

Exercícios de pontuação amorosa.

Xico Sá

"Sim, homem é frouxo, só usa vírgula, no máximo um ponto e virgula; jamais um ponto final.

Sim, o amor acaba, como sentenciou a mais bela das crônicas de Paulo Mendes Campos: “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar...”

Acaba, mas só as mulheres têm a coragem de pingar o ponto da caneta-tinteiro do amor. E pronto. Às vezes com três exclamações, como nas manchetes sangrentas de antigamente.

Sem reticências...

Mesmo, em algumas ocasiões, contra a vontade. Sábias, sabem que não faz sentido prorrogação, os pênaltis, deixar o destino decidir na morte súbita.

O homem até cria motivos a mais para que a mulher diga basta, chega, é o fim!!!

O macho pode até sair para comprar cigarro na esquina e nunca mais voltar. E sair por ai dando baforadas aflitas no king-size do abandono, no Continental sem filtro da covardia e do desamor.

Mulher se acaba, mas diz na lata, sem mané-metáforas.

Melhor mesmo para os dois lados, é que haja o maior barraco. Um quebra-quebra miserável, celular contra a parede, controle remoto no teto, óculos na maré, acusações mútuas, o diabo-a-quatro, barraqueiros corazones.

O amor, se é amor, não se acaba de forma civilizada.

Nem no Crato... nem na Suécia.

Se ama de verdade, nem o mais frio dos esquimós consegue escrever o “the end” sem uma quebradeira monstruosa.

Fim de amor sem baixarias é o atestado, com reconhecimento de firma e carimbo do cartório, de que o amor ali não mais estava.

O mais frio, o mais “cool” dos ingleses estrebucha e fura o disco dos Smiths, I Am Human, sim, demasiadamente humano esse barraco sem fim.

O que não pode é sair por ai assobiando, camisa aberta, relax, chutando as tampinhas da indiferença para dentro dos bueiros das calçadas e do tempo.

O fim do amor exige uma viuvez, um luto, não pode simplesmente pular o muro do reino da Carençolândia para exilar-se, com mala e cuia, com a primeira criatura ou com o primeiro traste que aparece pela frente.

E vamos ficando por aqui, pois já derrapei na curva da auto-ajuda como uma Kombi velha na Serra do Mar... e já já descambarei, eu me conheço, para o mundo picareta de Paulo Coelho. Vade retro."

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

desta noite

Eu queria te contar desta noite. A noite em que eu quis te matar em mim. A noite em que eu quis não te ver a cada momento em que deitava os olhos no céu. Em que quis que tua lembrança fosse não mais que ausência, tempo distante, brevidade. Da noite em que saí de casa e quando voltei não vi mais tua sombra no sofá vermelho, na cama, na cadeira escura, na memória.

Eu queria te contar uma história que não houve. De um tempo feliz em que nos encontramos, em que fomos sós e inteiros, em que nos perdemos sem medo, em que nos reconhecemos e nos demos as mãos.

Eu queria te contar de tudo o que ficou. Do verso derramado manchando a parede branca, da velha canção pairando sobre a casa, da calma amanhecida, do sono compartilhado. Do riso esparso perdido ecoando, iluminando o quarto escuro.

Mas já inventei de ti em mim uma presença tão funda, que mais não posso inventar.

Só te posso dizer da noite em que sobreviveste. Em que deixaste tua sombra à minha espera na mesma sala vazia, na mesma cama, no mesmo sofá vermelho.

E de uma saudade muda do que não fomos.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Des-semelhantes


Ele, noturno. Eu, matinal.

Ele, silêncio, eu, palavrão.

Ele razão, eu, passional

Eu, todo mundo. Ele, solidão.

Eu, mpb, ele, roquenrou.

Eu, botequim, ele bistrô.

Ele, erudito, eu, popular.

Signo de terra. Signo de ar.

Quase tudo

Quase nada

Ele, cinema.

Eu, madrugada.

ele analisa, eu sintetizo

ele se ausenta, eu me imobilizo

se impacienta, eu me desespero

ele indiferente, eu pondero

ele, em profusão

eu, sem ninguém

eu o desejo

ele me quer bem

ele, palavras,

eu, toda ouvidos

diferentes.

parecidos.

domingo, 5 de outubro de 2008

et pourtant. et encore.

Et pourtant je t’aimerais encore une fois, malgré ton départ sans adieu. Malgré les absences, la solitude, les larmes, la perte des rires et des mots, la peur. Pour toi je referais les mêmes fautes d’orthographe, de pensées, de sentiments.
Pour toi je me tromperais encore, et encore j’aimerais croire à la lumière du jour qui ne revient plus. Et encore j’aurais envie de plonger dans l’ombre à la recherche du trésor caché dans le puits de tes yeux à moitié fermés pour y boire les sons de ton âme fatiguée et sans espoir. Sans regret, je t’ouvrirais encore mon âme et mon corps et ma vie. Et je t’offrirais mes trésors à moi, sans réfléchir, sans hésiter, sans partir, sans te laisser tomber jamais.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

primeira noite

No rádio, a propaganda da 'maternidade-referência' e a música de fundo: “tutu-marambá/não venha mais cá/que a mãe da criança te manda matar...”

Ê nós!

Sentada no chão do banheiro mínimo, uma só janela por onde foge a fumaça. Ainda escuro, espreito o primeiro claro. Pensando. Aliás, cantando, pra não variar: “aqui os mortos são bons, pois não comem o pão dos vivos e não atrapalham em nada” – e era pra ser um canto de alegria. Ou não.

Cerâmica branca meia-parede, um grilo. Um grilo no portal, três pernas de cada lado, duas antenas grandes, um rabo, arremedo de mais duas atrás. Um grilo entrando no buraco da parede, o papel rolando, desenrolando no chão. Camelos como herança. O grilo e eu. Sem lua. Não sem grilos, que a um trocadilho cretino nunca pude resistir. De toda forma, o chão é frio. A noite, quente, longa e insone. Solidão e fumaça e café. E era pra ser uma festa. Ou não.

A bola amarela do sol dispersa as sombras. Amanhecem mirradas, evaporam, adensam nuvens recém-chegadas. Uma estrada, dois lados de mato, uma memória antiga, cheiro de manhã novinha, dor. Dormência. Trilha. Caminho. Chegada. Sérgio Ricardo, na vez: “tenho pra minha vida a busca como medida/o encontro como chegada e como ponto de partida”.

O que restou de terno em mim lembra a semente de feijão embrulhada pra presente.
Semente de hoje, mulher de amanhã. Espero, não uma a mais, sentada, mais adiante, em um chão de banheiro riscando no ar figuras de fumaça e cantando de memória coisas tristes.

Se no entanto há que ser assim, que assim seja, amém.
Melhor que matar o tutu-marambá.

Homenagem

domingo, 28 de setembro de 2008

outros outubros não virão

Um amigo me escreve "rapidamente" - diz - na contramão do seu estado atual, “que a mente não está tão”. Ainda bem que não. SPA - síndrome do pensamento acelerado - atrapalha a vida, tirando principalmente o sono, conforme soube. E ele me fala da greve das palavras, embora despreocupado com esse movimento. "A gente vai alternando aridez e fertilidade, que faz parte" - respondo eu.
E me tenta: “dia desses uma água de coco, sol, areia, vento, calor, corpos sarados e vazios passando...”.

Talvez seja hora mesmo de dar uma perdida por aí, que não agüento mais um dos trabalhos. E quem agüentar o tempo todo levante a mão.

Meio à canseira e ao praquêtudoisso?, semeperguntarem periga sumir num pressionar de rato, mas tem relutado, rebelou-se, feito a voz do dono, de Chico. E vai ficando.

Pra não dizer que não falei de amor, de amor e loucura, de loucuras de amor: velejando, em meio às dispersões da redação do outro trabalho - nada a ver com isso aqui nem com o um que garante o pão - aportei num portal de psiquiatria. Bom porto. Ruim é se encaixar nuns itens que tem por lá, mas a gente sempre se encaixa. Felizmente, não em todos. No compto geral, pareceu-me que escapei de muitos. Não digo ao certo.

Sem bem-te-vi nem cancão-de-fogo, nada de novo no outubro além dos siris sem-par de Abimael nos cumpleaños de Cipa, dos regalos de Orf e The Imperator (tantas canções!) e dos novos números, nada alentadores, nas pesquisas eleitorais. Dá pra reverter? Vamos pra rua! Eu vou.

Ainda esperando ver a luz, Marina no ar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

pão e vinho

Duvidava de loucuras, descrente dos loucos mansos e das fórmulas mágicas.

A vida é um xarope e não dá presente, sabia. Por isso ia buscar, sempre, tudo. Limpava e arava e semeava e esperava. Plantava e colhia e fazia do trigo o pão, o suor molhando a massa, o forno aceso, a lenha queimando, no dia comum.

A vida é comum, comuns somos, todos, todos - constatava: o ritual matutino, a abertura do portão, o beijo nos seus, o trabalho, a rua, os passantes, o mês maior que a paga, as contas empilhadas, a roupa por lavar, a carta para escrever, o carimbo, o ônibus, a escola, o pique, a chuva.

Por isso o despertador tocava todas as manhãs.

Tudo comum, e ainda assim, nada, nada se repete ao olhar mais atento.

Daí o fascínio quando a luz esmorece e começa a se esconder, trazendo um estado d’alma que requer outra existência, tons crepusculares, entidades sutis quebrando a invisibilidade, temas fosforescentes, grilhões serrados, coração liberto, estrelas e sóis e álcoois. Poética e cantos e embriaguez e esperanças e bailados e encantamentos e sortilégios.

Por isso perfumava a tulipa da espiritualidade com essência de acácia, quebrada a de jasmim que viera nos dedos da manhã.

E duas existências se fundiam em uma, onde rotina e transcendência oscilam nos pratos da balança dizendo ser o pão necessário, mas nem só de pão vive o homem e os lírios do campo não cosem nem fiam.

Duvidava de loucuras até que o encanto rompia o embotamento.

Até quando via nos rostos a magia da graça, do riso, quando mesmo o pão não havia. E aprendia, mesmo que um pouco só.

Que um pouco só já fortalece. E ajuda a caminhar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

só um dia

Ainda quis esperar um dia, uns dias, cantando, insistente: ‘pra mim, basta um dia, não mais que um dia, um meio-dia’. Quis, quis tanto que parei de querer pra me perguntar se queria de verdade.

Veio a madrugada enchendo o quarto do calor que não era do teu corpo, a insônia, o sono, o torpor, o susto, o medo, o desejo, a falta, o dia trazendo mais falta, mais ausência, mais calor que não era o teu.

Cantando, sempre: ‘como se fosse a primavera, e eu morrendo’. E querendo viver. E minha vida uma rota, roteiros, umas ruas, uns pés a pé, um carro, uma procura sem fim, do amanhecer à noite, cansada, cansada, casa fechada, cupins em festa devorando meus papéis e eu me perdendo e te perdendo, a cada momento, minuto, a cada dia um pouco mais. E te perdendo entre seios pernas bundas risos sons, molhando madrugadas tuas onde eu distante. E te querendo ainda: ‘me dá só um dia e eu faço desatar a minha fantasia’. E pensando ainda se te quis, te quero, se te perdi sem nunca ter encontrado, se nunca mais vou te encontrar.

E nunca mais é tanto tempo que nem vou estar mais aqui nem você nem nós nem ninguém mais. Mas sei, dentro em mim: não existe nunca mais, tanto quanto sempre não existe. Ainda assim te quero sempre, nunca mais te quero e já nem mais sei bem se quero. Nem o que quero.

Ainda achei que voltarias, voltarás, que não voltas. Em momentos distintos, difusos, à meia-luz, meia-sombra, confundo tudo. E penso às vezes que nunca vieste de verdade, nem inteiro, nem mesmo metade vieste.

A noite agrupa os fantasmas em torno da casa, as sombras crescem, a escuridão lhes dá outras formas.

Que venha o sol, que o hoje me dói, que a noite não tem fim, que as noites tem sido sem fim, impiedosamente sem fim.

Que venha o dia, que espero, cantando, ainda, querendo 'um dia pra aplacar minha agonia, toda a sangria, todo o veneno de um pequeno dia’.

( ' ' : fragmentos de Basta um dia, CBH)


terça-feira, 23 de setembro de 2008

do poder jovem

E é quando a gente menos espera que nada acontece mesmo. Disseram que o mundo acabaria junto com o eclipse lunar, que o rio mudaria seu curso, seguindo do mar à serra, que o mar engoliria essa cidade. Nada, necas nem coisa nenhuma. Ainda. Questão de tempo.

Mileniozinho acanhado, início de século desconjuntado, década atravessada. Conversinha mole de quem já passou, talvez. Que esperar então? Relembro O Poder Jovem, de A. J. Poerner, a juventude nas ruas. A de hoje também, a caminho do show dos plays. Bem outra, esta dos orkuts-messenês-tv-sentaqueédementa. De menta. Sair-dançar-beber-cair-e-levantar e ficar e reficar e a fila anda. E aonde vai mesmo? A fila não incomoda, como nas Autoridades do Capital Inicial: bonecos para brincar. A fila, a massa, nada homogêneo incomoda, que nessa fusão fica fácil brincar de modelar o todo, mais que escolhendo cores pra montar o jogo.

Falando nisso com meu sobrinho Gabriel, estudante, ‘aprendente’, recebi notícias boas. Disse-me que há algo em fermentação, contrariando os que não vêem saída, os que chamam esta de geração perdida. Um povo bom fazendo música e livro e arte, alfabetizando na favela, rompendo o cerco acadêmico, montando biblioteca na periferia, a exemplo do Paço. Timidamente, há algo em gestação, esboço de reação, sopro que se delineia apenas. Se é só oba-oba com estereótipo engajado ou se vão querer redimir um mundo que agoniza, não há como saber. Ainda que por pouco tempo, que ao menos surpreendam minimamente os que agonizam no mundo, dando-o já por perdido.

Quero crer.


rotação

porque já era tarde não te vi
bramir de ave, arrulho de mar
marulho

o sangue no ar da noite,
pálida palavra

água da vida
banha o dia
a sede morna, o bêbado passo

no ar, ensandecido, o grito
olhar da lua agudo

na madrugada longe
poças de silêncio

parto


sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Carta a Antônio 2008.2

Caro Antônio,

Eu lhe disse adeus, uns tempos atrás. E até breve, até um dia.
Até hoje.
É que ontem, no bar, ouvi Praça Clóvis e lembrei de você, do retrato rasgado, jogado no lixo, recomposto milagrosamente, perdido no fundo da caixa de papelão sob outros retratos esquecidos e empoeirados. Você há de me perdoar por isso, eu sei. Tornei pois a arrumar a caixa. Sem danos.
Estive longe, lejos. Nem sequer lhe escrevi um bilhete comemorativo pela passagem de um ano do nosso primeiro encontro.
Foi um julho estranho, este. Muitas chuvas e um sol inusitado interrompendo uma longa espera.
Soube que você andou pela cidade. Como não nos vimos, parabéns para nós agora.
Houve um moço, nesse meio-tempo, você deve saber.
Não sabe é o quanto eu faria pelo amor desse moço. Como não me foi dado fazer com você. Faria mais, confesso, posto que esteve bem junto ao meu coração. Você sabe como amo tortamente, quão fundo me lanço, o quanto me reduzo, agigantando o outro. Como fico piegas, patética, risível, e de tanto me assustar e me encolher, desapareço. Como conosco, tal e qual ocorreu, que as histórias são parecidas, que é difícil arrancar planta sem deixar raiz. Com ele ousei muito mais, despi lágrimas e pudores. E ele se foi.
Tive idéias, chegadas as notícias depois. Nada trágico e ao mesmo tempo, sim. Não pensei em arsênico, curare, estriquinina. Pensei em botox, academia, silicone, curso intensivo de alquimia, elixir da juventude, renew clinical. Mas nada disso era rápido. Nem retroativo.
O tempo é implacável, meu caro Antônio. E leva muito de nós. E deixa muito em nós.
Pensei ainda em mudar de tema, de indumentária, em me aventurar pelo mundo da haute couture, dos scarpins e tallons. O detalhe é que passei da idade, e isso só me faria fútil, não leve. Só me traria arremedo, não sedução. Escolhi o caminho de Baco, que triste não sou.
Voltei aos chorões, revi personagens, bebi do vinho o que suportei. Peço-lhe que desconsidere não termos brindado. Não havia como.
De lá migrei a outras plagas. Saindo, ainda, alguém puxou a barra do meu vestido vermelho. Olhei, ignorei, prossegui até o galpão, levantando poeiras, poeirinhas, poeirão.
Lá, uns jovens. Uns vermelhos. Uns ratos. Uns bons. Um insistente: o da barra do vestido. Olhei melhor. Moço. Belo. Alto. Magro. Olhos negros. Olhar inteligente. Interessante. Interessado. Discurso vermelhoso. Pensei: por que não? Despensei: porque não, que outra imagem me veio à lembrança.
Não esperei o bar fechar, a noite findar nem o povo sumir. Fechei um dos olhos, que a estrada se duplicava, na volta. "Puedo escribir los versos más tristes esta noche" - soprou Neruda.
- Qual o quê! - discordei.
Hoje é um dia novo, escalo as paredes e volto à superfície, inteira mas não intacta. Viva.
Quis lhe contar tudo isso, meu caro Antônio, para voltar a falar com você sobre os abismos. Hoje discordo, em parte, de Paul Valéry. Não é só a vegetação que os cobre que os faz diferentes. Há a profundidade deles também. Afora isso, são mesmo muito parecidos. Ademais, são todos letais. Surpreendentemente, escapamos depois da queda.

Hoje, um bem-te-vi pôs seu papo amarelo na borda da janela, a primavera anunciada em seu canto.
Daqui lhe envio a imagem do bem-te-vi, meu beijo amigo, meus até um dia, até breve.

Maria

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

inverno-primavera-verão

Na janela envidraçada da sala, no breve momento de estiagem, o raio de sol apareceu, desconhecendo a invernada. Brincou com as sombras, afagou a mesa e uns braços nela pousados.
Das nuvens escuras, o vento trouxe mais e mais chuva, até a estação mudar.
Os braços, já fartos do frio, receberam a visita outra vez.
Prometeu a si precaução. Nada de queimaduras. Pra desconsiderar a promessa tão logo o viu, luminoso, tão logo o sentiu, aquecendo braços e o mais ao redor. Pra desconsiderar a promessa e abrir a janela. Janelas. A porta. Portas. A casa inteira. Não aos poucos, que de pouco não era. Expôs pele. Corpo. Sob o peito, o coração, onde ele se instalou. Onde fez pouso, não morada, que as estações sempre mudam. Onde fez festa, algazarra, dispôs encantamentos. E de lá varreu poeiras e certezas. Abriu gavetas. Queimou escudos. Revelou cicatrizes, remexeu-as.
E como aqueceu, queimou.
E como chegou, partiu.
Que havia o chamado lá fora por raios de sol.
No coração antes dormente, tornou-se sonho de calor. Que não era tempobom, tempoainda, tempodeser. Que tempo certo, nunca há.

- Já é primavera - ouviu dizerem. Olhou sem enxergar. Sem pranto, sem riso. Sem saber nem o que tinha sido mesmo, se raio de sol ou temporal.

E com alguma alegria ainda, que quando viesse a perceber a primavera, o verão já estaria pra começar.


domingo, 14 de setembro de 2008

Medidas

Quanto de nós duvida? Quanto acredita?
Quanto arrisca? Quanto hesita?
Quanto desespera? Quanto pacifica?
Quanto esmorece? Quanto excita?
Quanto repete? Quanto improvisa?
Quanto cala? Quanto grita?
Quanto assume? Quanto despista?
Quanto agrada? Quanto irrita?
Quanto acaricia? Quanto atrita?
Quanto enfastia? Quanto instiga?

Quanto passa?
Quanto fica?

Quanto pressente? Quanto delira?
Quanto é ventura? Quanto, desdita?

Quanto verdade?
Quanto mentira?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

do turismo local

Já deu a volta ao mundo sem sair da sua cidade? Se não, é hora de fazer esse tour, imperdível, coisa possível daqui mesmo de Natal.

Ponha os pés na areia d’África, visite os mocambos da África, casas de papelão, palha, taipa, alvenaria até. Umas em pé, outras de banda, escoradas na duna, dependuradas no fio invisível passando rente aos das altas tensões. Banhe seus olhos nas águas da África, fios de esgoto beirando as casas sem calçada ou calçamento, escorrendo, formando gretas depois no barro ressecado do chão. Veja as crianças da África, com seus animaizinhos de estimação, seus cachorrinhos sem petshop, suas pulguinhas de flor de cajueiro, suas facas de cozinha nas brigas de rua. As meninas semi-nuas, muitas, e muitas grávidas nem bem ainda despontam-lhes os seios. Umas dançando, em frente de casa, escutando não Ranchinho de Paia, mas o último hit de Aviões do Forró, o das letras inspiradas em raparigas, cabarés e temas afins. Em dias piores, manhã cedinho, capaz de algum corpo morto em campo de futebol de areia, como já foi dito por quem viu. Como já vi.

Quer conhecer? Logo ali, pertinho do rio-mar, ao lado do Potengi-Redinha, a comunidade da África: sem placa indicativa nem faixa de boas-vindas. Ainda assim, fácil de chegar.

Pode-se também conhecer o Japão. Um imenso labirinto, o Japão. Uma África natalense urbana. Uma Sidi Bou Said mais apertada, pobre, sem glamour, sem badulaques à venda em frente às portas, sem casas brancas de portas azuis. De similares, os sons e as gentes o tempo todo nas ruas-corredores. O labirinto. A gritaria, a balbúrdia, o burburinho incessantes, dependendo da hora do dia. De brinde, uns tiros à noite. A vista para o rio e seus barquinhos de papel higiênico usado, garrafas pet, sacos de lixo, bichos mortos, lama, podridão, passando, encalhando nas margens, oferecendo pasto pros moradores, um pedaço de madeira, um salvado qualquer. E, também, nas casas, na fachada, escrito em cima que é um lar, como na perdida gente humilde de Vinícius de Moraes. Sem varandas, sem poesia, sem flores tristes e baldias.
Acesso pelo vizinho bairro das Quintas. Há outros caminhos. O mais curto é esse.

Há outras opções. Outros lugares do mundo. Há Leningrado, dos assentamentos, como houve um dia a Coréia, dos mosquitos. Só pra falar em cidades e países estrangeiros. Há mais lugares, mas não nos alonguemos, não percamos tempo. Há muito o que ver além da bela Punta Negra. O panorama é que não muda muito, “y la pobreza es la misma/los mismos hombres esperan”, como na milonga de andar lejos, de Daniel Viglietti. Existindo, trafegando pelas ruas de cá, por mais que se os ignore. Esperar talvez seja seu grande mal.

Vale, ver, pois, sua cidade inteira, antes de dizer conhecê-la. E Daniel, que é uruguaio, pode bem ficar no canto dele, deixando o recurso a Caymmi parafraseado: “você já foi a Natal, nêga? Não? Então vá!”.


terça-feira, 9 de setembro de 2008

de labirintos e amortecedores

Tonta. Segunda vez desde a semana passada. Tudo focado, aí um movimento mais brusco, um meio-giro de pescoço mais ligeiro, procurando uma rua, um número, e a rua em frente sai do lugar e demora a voltar mais que sempre. Quase me assusto, aí digo que ela não volta, não a rua, mas a vertigem, de jeito nenhum, nem que eu tenha que voltar a correr, a comer, a parar de fumar. E não volta, que já veio no derradeiro dezembro, durou o mês inteiro, sem álcool, comprimido diário, parede sempre colada com a mão, internação forçada no apartamento vazio, mundo caindo ao redor, em cima, trabalho criando teia de aranha, eu me enredando nela, caindo e de pé, só a impressão. E fui ver o que era: um tal de distúrbio do labirinto. Podia ser o peso do mundo. Podia ser da idade, os triglicérides, o tabaco, podia ser ausência, falta, solidão, doença na família, desesperança, tudo isso acondicionado, parece-me, no ouvido médio, numas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilíbrio embora.

Não gosto de remédio, médico, hospital, cheiro de éter. Nem suporto dor, doença, amofinamento, repouso e similares. Entre os dois ou mais, engoli uma bomba, dizendo: quem lhe chamou de volta? Equilíbrio agora é do que eu mais preciso. E sem tempo pra não tê-lo, xinguei o labirinto até umas horas.

o, e umas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilrar de fumar, comerEntão, evitando olhar pros lados - mas como encontrar os endereços senão olhando? -, fui-me, ruas afora, escutando o sambinha antigo de Vanzolini no rádio imaginário do carro, cantarolando, como sempre, pro pensamento não ficar fazendo eco no côco: "saiu de casa, com o terno tropical/camisa creme, lenço e gravata igual/jantou e saiu satisfeito/antes da meia-noite morreu com um tiro no peito". Sangue, cravo branco, algo assim. Tem música que cola no miolo. Essa quero não - recusei. E não vinha outra.
No caminho, vontade nenhuma, prazer nenhum, todas elas e todos eles. No caminho, a procura difícil: vaga pra parar. Uma só, frente a uma clínica – Holos. Terapia adiada derna de 1912. Agência de viagens ao lado. Qual das duas? Viagem ou terapia? Nenhuma, que o número não batia. Padaria do outro lado da rua, nem pra comprar um sonho. Fechada, às três da tarde. Onde já se viu? Não se sonha mais nessa cidade?
E o endereço, finalmente, não achei. E o barro do bairro já não é mais vermelho, quase ninguém é mais vermelho. Parece que perdeu o significado ou ficou lá atrás, num ponto vermelho da história.
Numas de já que taí deixa ficar, me aventurei mais adentro. Pois não é que a rua ao lado da padaria mudou até pouco? Ainda é de paralelepípedos, nenhum edifício subiu por lá, uns 40% das casas ainda conservam a fachada de décadas. Lembrei que de casa até a padaria era um bom pedaço de chão, e quando estreei a ida lá só, era a própria independente. Falar em paralelepípedos, lembrei também que foi a primeira palavra que o avô, não o meu, ensinou pra neta de um ano que a repetia sem atropelo, só pra contrariar quem não acreditasse. Lembrei do bolo - ô bolo bom! - marrom no meio, branco nas pontas, do cheiro de pão no fim da tarde, da fumaça da lenha no forno da padaria... Hoje não gosto mais de bolo, nada doce, só sal, salgado, bem salgado, café forte, pimenta brava, tempero.
Na casa velha do barro, azul desbotado, santos e fotos de mortos nas paredes, caminhos de cupim, formigas levando o derradeiro embora, ainda um café forte, que vou e encaro, pedindo licença ao labirinto, que não sou bem gente, nem guardo o leito, como no poema de Alex Nascimento que um dia colei na parede do quarto de onde fiquei ausente por bons ou maus treze anos. Tudo no lugar, pois, nenhuma nova vertigem, vou-me, espreitando as laterais sem balançar muito a cabeça, procurar mais cantos pra ir, forçosamente, que hay que trabajar, e vem geraldo, o vandré, entristecendo a cachola de música: "eu vou voltar pra mim/seguir sozinho assim/até me consumir ou consumir toda essa dor/até sentir de novo o coração capaz de amor". E a recuso, também, e a afasto, e me afasto, e faço o percurso de volta, e as ruas já não dançam, e não permito essa cantiga, que fora o labirinto querendo desconjuntar, entro mesmo, estranhamente, é em outra: "socorro, eu já não estou sentindo nada".

"o amor

o amor tece

o amor tece dores

amortecedores"

(Everardo Ramos)


segunda-feira, 8 de setembro de 2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Ser e pertencer

São muitas as questões. Cada passo, um pedaço de caminho. Cada manhã, um desafio. Cada dia, um leão pra matar.
São muitas as informações sem serventia. O que se viu. O que se ouviu. O que se leu. O que se aprendeu (?). O que se instituiu como certo. Válido. Aceitável.
Muitos os papéis que se assume. E as interrogações em sua órbita. Faço, não faço, digo, não digo, sou, não sou, pareço ser. Quem você é, quem você pensa que é, quem somos, quem pensamos que somos, como somos vistos.
Identidade. Pesa aí o onde, como, porque. Quem você é em função de onde vive, de quem lhe cerca, do que lhe formou. Quem você é intimamente, com você e com quem lhe é caro.
Ser. Pertencer.
Alguém é homem, preto, brasileiro, nordestino, trabalhador, cristão, casado, vascaíno, vegetariano, social-democrata.
Alguém é humano. Ponto. O mais se refere a pertencer. Em cada aldeia, uma conduta. Desloque-se esse homem do seu meio. O que resta? O que conta?
Leonardo Boff relata que em um dos seus momentos na prisão, frei Betto queria um espelho, pois sonhou consigo, quando não mais lembrava como era o próprio rosto. E assim chegou à conclusão que era natural isso, pois somos feitos mesmo é para ver o outro. E nos esquecemos finalmente de nós quando reduzidos a nós mesmos, à nossa desimportância, à necessidade de buscar conforto além do nosso umbigo.
Alteridade. Palavra esquecida. Conduta esquecida.
O amor ocidental tem sérias distorções. É egoísta. Possui. Reduz. Aprisiona - pertencer.
O amor em sua essência é libertário. De doação. Partilha. Entrega. Revelação - ser.
No primeiro cabem todas as questões e informações sem serventia.
No segundo, pra quê?
São poucas as respostas. Bom para que se prossiga buscando.

Bom deixar que vivam os leões, que nas manhãs nordestinas, leões só em filme.
Ou em sonho. Tê-los perto é privilégio.

(pensando em M., que me fez querer ver além de mim, buscar o amor maior e me desnudar)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A morte do xamã


"Avô,

Peço a morte

para as partes de mim

que não ouvem

nem falam a verdade,

que são cegas demais para ver.


Avó,

Dá-me a luz de novo,

com o amor como meu guia,

a verdade e a beleza como meu caminho,

sem nada a ocultar."

(As cartas do Caminho Sagrado)

terça-feira, 2 de setembro de 2008

de como se fica tolo e se escreve versos bobos e não se está nem aí quando se está amando

O meu amor
É pura poesia. Em prosa.
É dengo na voz
Nos olhos risonhos
Na boca
macia
de beijar

O meu amor
É altar de sonho
guarida no temporal
Chuva fina na aridez
Viração,
vendaval

O meu amor merecia
Palavras de prata,
Silêncios de ouro,
Nobre que é.

Eu
não tenho mais
que versos de pé-quebrado,
Sextilha, oitavas, quadrões,
Parcelas, toadas, mourões
Martelo-agalopado.

Ainda assim,
me quer.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Como la luna llena

Uma fome, outra fastio. Uma come, outra, jejum.

Na alquimia do fim de mês, o milagre aparece brotando, de onde se pensava nada, pão de queijo, mangaba fresca, leite morno, café quente, cuscuz nordestino. Tudo feito devagar, que a cozinha não comporta duas.

E uma ralha: a outra ri.

Rindo, de manhãzinha, pela alegria da manhã e do encontro, brindando conversa fiada com papo-cabeça.

Uma escreveu sobre a outra, há tempos: “i love her, and i know: she loves me”. A outra capitulou. Como não entender?

A outra nunca escreveu sobre. Sempre para. Bilhetes, cartinhas, cartas, cartões. Postais. De onde estavam juntas sem estar. De onde estavam distantes sem estar.

Uma não queria atropelos, incertezas, desafios, não porque os temesse, mas pelo desinteresse mesmo de sua plácida e silenciosa morada touro-touro. Outra não queria repetir o que já havia: “dame la esperanza de um camino nuevo...”

Uma partiu, voltou. Outra partiu, voltou. Distintas, ficaram um pouco ao partir, deixaram um pouco ao chegar.

O que incomodava, lá bem no fundo, a uma e a outra, era saber de mais uma iminente, derradeira partida. Que as asas brotavam. Que as raízes cresciam. Que a estrada se bifurcava. Outro palco, outros papéis, onde já não estariam como uma e outra. Para aonde viriam outros mais. E tudo era obscuro, assustador, desconhecido e maravilhoso. E se assim era, como não querer?

Como não se despedir do presente com tristeza-alegria? Como não preparar a acolhida do futuro em tons pastéis-lilás-bebê?

Que tudo se reinventa. Que se encena outros papéis. Que o ciclo não se interrompe. Que a vida se recria, se refaz, finda, renasce, gira, passa, volta, mingua. E cresce.

Como Luna. Llena.

sábado, 30 de agosto de 2008

Pastilhas de freio

Era uma discussão interessante. Quem disse o que sobre o que. Porque disse. Os equívocos. Os acertos. As origens (?). As seqüências.

E assisti. E discuti. E refleti. E escrevi. Até não mais querer. Então fui para o mundo. Ver. Queria ver. Ray Charles é cego. Meu pai também. Já era antes de perder a luz dos olhos. Sou hipermétrope. Só à distância vejo bem. E vi. Quase tudo azul, não fosse pelo concreto e pelo – ainda – verde entrecortando o azul. Vi o cinturão de areia na cintura do mar. Duna branca, duna amarela. Asfalto preto, cinza, desbotado. Cidade azul. Cidade veloz. Velocidade minha confundindo as cores.

Mais de hora, indo, vindo. E vendo. Sem nada além do registro da cor e apreensão da paisagem na retina, que amanhã não sei, que retinose é hereditária. Que não herdei, me disse quem sabe. Herdei foi a sede de ver, ouvir, apreender, descobrir. Escapei das sífilis, por um triz. E vi, sem estado alterado de consciência, passado e presente, um no outro, outro no um. Futuro não, que não sou besta. Vi até cansar e querer voltar pras paredes. Minhas? Pra discussão inacabada. Pro abrigo, proteção, pitada de tédio e preguiça junto. No leito, antes do sono, penso na urgência em trocar as pastilhas de freio.

Desperto e me envolve, escapando das dobras do lençol, abafada até então pela visão e discussões do dia, a lembrança de um corpo no meu. Urge trocar as pastilhas de freio.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

do mundo

Há dezoito anos teria sido uma moça como eu fui. Não fosse surda. Muda. Doente.

Não posso precisar que idade tem hoje. Uns quarenta? Talvez menos. Óculos, cabelos curtos, alguma beleza ainda, alheamento, uma sombra de raiva por trás do olhar. Ou de medo. Ou apatia - transfigurada, na minha imaginação.

Teria sido “normal” há dezoito anos? Viria a ter marido, filhos, netos, lar? Trabalharia, viajaria, estudaria?

Não sei quando aconteceu o corte, a ruptura com o mundo. Se vinha do berço ou tinha se dado há dezoito anos.

Na casa pequena, pobre, as três mulheres. Ela, a mãe, a filha. Ela sem falar, sem ouvir, olhar fixo em mim, sem parecer ver, entender nada.

A filha, olhos inteligentes, aparelho nos dentes, sorriso sem alegria, explicando: - assino por ela. Respondo por ela. Vou pra universidade, estou no pré-vestibular. Ele vai ter que pagar, de algum jeito.

Não era o pecado que morava ao lado, mas o perigo que morava em frente.

Estupro. Há dezoito anos. Demência. Causa ou conseqüência.

E saí pensando nos trituradores de sonhos. Na moça que não tinha sido feliz, como um dia fui. Na outra moça, que nunca mais será feliz como um dia fui.

No mundo, que é assim mesmo, que sempre foi, que talvez nunca deixe de ser.

E sabendo ser assim mesmo, segui pensando em por quais motivos ainda me dói.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

da alfabetização

Alfabetizada em casa, como por brincadeira, aprendi a ler cedo, antes dos cinco.

Aprendi bem tarde a ler nas entrelinhas.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

dos arcanos III e IV

Chuva demais alaga, mata. Água = emoções, copas.
Amores vêm, amores vão(s)(?).
“Se você pensa em desistir de mim, baby, é porque já desistiu” - ouviu um negócio desses uma vez. Disse um parecido.

Os oráculos só falam aos que sabem interpretar seus sinais.
Ruim de interpretar sinais, reconhecia. Reações tardias. Auto-proteção?
Primeiros momentos: em êxtase. Quando em xeque: espinhosa, contida, contendo, até regurgitar dores e medos. Depois: anestesiada, dormente. Seguindo: um turbilhão. Fogo esterilizando a terra até a recomposição do solo. Outra vez.
Em carne viva, nua, aceitou.

Pôs a mesa, queria o quê? (e a tinha posto para si, jurava, saudosa de si que estava, querendo o reencontro com a parte perdida, adormecida, latente) Vieram os famintos, os curiosos, os lobos, o louco, o enforcado. Recusou-os. Veio o Imperador, de passagem, em visita, que era ele de outro império. Veio o Imperador, na maratona talvez-sim-não dos signos de ar.
Estaria à altura, ela? Quem era ela, além das suas contradições e do seu sentimento de inferioridade - parceiro constante e fiel?
Júlia discordava, era preciso não esquecer. Júlia sabia ler sinais. Por isso a consultava, há algum tempo, alguns anos, uma vez por ano. E Júlia tinha lido que era uma Imperatriz.

Para o que for. Podia ser pouco, nada. Engano, isso, em se tratando do Imperador. Tudo menos pouco ou nada.

Nas armadilhas do pensamento, nas armadilhas das emoções, o sopro, que não sabia se intuitivo ou medroso: devagar. Sem se desviar. Continuando a peregrinação do louco, até o fim do caminho.

Como quem pondera não delira e a caixa de chá estava vazia; como por hábito; guardou nela as elucubrações todas, pragmática, com a costumeira compartimentalização de Virgo. Afinal, não vivia em função de tais questões. Talvez por isso a atordoassem tão intensamente quando lhes permitia um espaço no dia. Listou as tarefas, ficou para fazê-las, saiu para fazê-las, intimamente esperando o fim. Do mundo.

Ou talvez nada disso, que o ser trágico não é atributo de um só.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Quando nos vemos

Nos vemos. Duas palavras. Só.

Nos vimos, uns tempos aí, e pouco ou nada nos dissemos, e passamos, e nos perdemos, e nos guardamos, sem saber, talvez, em algum lugar, pra algum tempo futuro.

Nos vimos, por fim. E nos quisemos. E nos deixamos querer, sabendo que fácil não seria.

Hoje, perambulo pelas ruas da cidade vendo tudo, vendo nada, estando nela e além. E volto pra casa, onde a solidão é boa, o cansaço é bom, a lembrança é melhor, a expectativa alimenta a noite e o dia que vem, que não parecerá só mais um dia, ainda que só isso seja. E vibro, e pulso, e sinto, e quero, mais, e mais, mesmo sem saber ao certo o que, nem se temendo ou não. E sonho encontros e palavras e sabores e cheiros e gestos e jeitos e toques e carícias e mais. E risos e mais.

E o peito taquicarde, que fumo cigarros de outra marca e vasculho fragmentos da sua vida e reviro suas gavetas, tentando assim aproximar o meu caminho do seu.

Nos vemos? Futuro. Alumbramento, promessa, magia, um mundo novo, imenso, ainda que em breve tempo, de sol aquecendo. Porta entreaberta por onde quero entrar e me perder, e me encontrar, e não sabendo muito bem o que fazer, não pensar , demais.
Que tudo o mais me parece nada quando nos vemos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

sobre Ceres e padrinhos

Tradição do interior, os padrinhos, nos tempos de antanho, quando vim ao mundo, deveriam ser “pessoas importantes", para que garantissem aos afilhados um futuro, em lhes faltando os pais. Os donos do curtume da capital, ou parentes próximos destes - não me dei o trabalho de averiguar - foram escolhidos para desempenhar junto a mim esse papel. Não me lembro de tê-los visto no dia do batizado, nem de ter chorado. Para brindar minha entrada na comunidade Católica e Apostólica Romana, onde nunca cheguei a entrar de fato, deixaram-me brincos minúsculos, de ouro e água-marinha, que nunca usei, que não tinha furos nas orelhas. Ela tinha dez anos e me apresentou a eles na pia batismal. Virou, pois, madrinha de apresentação. Na falta dos titulares, e por vê-la diariamente, findei abolindo a apresentação e chamando-a de madrinha, tão somente. Bela e miúda, cabelos longos, escuros, pele clara, fartura de sorrisos, doçura sem fim, força e bravura idem, voz limpa, clara, de cantar bonito, mania de registro das cantigas em cadernos de música que as mocinhas da época mantinham, por obrigação, de páginas que decorei um dia.

Mãe, cansada dos seus muitos anos e muitos filhos e muitas tarefas, não tinha muito tempo. Ela então me adotou. Os meninos-irmãos sabiam ser maus quando queriam. Mas nem sempre podiam, que estava lá, a desafiá-los, valente, que aqui ninguém encosta.
Mostrou-me o mar pela primeira vez. Levou-me ao circo pela primeira vez. Entregou-me o primeiro troféu, de folhas, quando tive a primeira coragem de vencer o medo da queda e escalar os galhos mais altos da goiabeira do quintal. Leu comigo e para mim os primeiros livros, me embalava na rede cantando, me levou a ver o primeiro filme em preto e branco - Dio, come ti amo. E também o primeiro colorido, no Rio Grande, que me deixou por meses sonhando com o mar dos Dez Mandamentos recuando ameaçador, pronto para nos engolir a todos ao retornar.
Pés descalços para não ser percebida saindo de casa à noite quando ia vender jornal Movimento, ou para reuniões secretas - para “preparar a revolução”.
Pés descalços porque livre, desejosa de sentir sob eles o chão da rua, de perambular cantando pela noite, qual flautista de Hamelin encantando ratos. A fieira de aprendizes deslumbrados atrás - nosotros.

Pai bravo, ela desabrochando, excesso de nãos e apelos externos para a vida, já trabalho e universidade, amigos e desejos, futuro e presente, saiu do mundinho do bairro e vizinhas para fazer seu caminho. Senti. Chorei. Mas não queria que voltasse, que sabia que não era bom ouvi-lo dizer que não me responda, que não me olhe de frente, que furo seus olhos de cascavel, que não me desafie que sou seu pai e me respeite senão... E o cinturão de couro estalava, nos braços, nas costas e na platéia que risse, se opusesse, protestasse, chorasse junto. Não importava. Severo. Assustador. Seis anos voaram depois que se mudou de lá, a contragosto do pai, que a renegou por essa decisão. Nos três primeiros, sempre vinha às escondidas, nos ver, me ver. Depois abertamente, que o gelo quebrou com o surgimento do "companheiro", que moça direita não mora longe dos pais sem ser casada. E derreteu de todo com a chegada das crianças, enchendo a casa e desmanchando o siso do avô de cinturão gasto pelo tempo e uso. Seis anos voaram depois que se mudou. Em um dia de setembro - soube mais tarde que andava triste - saiu e não voltou mais. Sem notícias, a peregrinação por hospitais, instituto médico, desespero, dor. E constatação: não voltaria mesmo. Ficaram seus discos e livros, sua voz e palavras, sua beleza suave e pequena na lembrança, uma saudade sem fim, um buraco no mundo, no presente, no futuro. Ficaram seus filhos. E tudo o que me ensinou e não me esqueço nunca mais: “aprenda a repartir, não seja nunca egoísta, que os egoístas acabam sozinhos”. Como não acabou. Na despedida, muita, muita, muita gente. Nunca teve posses, como os “padrinhos” titulares. Nunca foi ausente. Nunca saiu do meu amor. Tinha eu dezessete anos quando vi pela última vez minha irmã, minha madrinha de apresentação.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Tarot


“Ilusão, ilusão, veja as coisas como elas são/a carroça, a dama, o louco, o sim, o não...”
A mesma canção de fundo de quando ela se foi, há 23 anos, o porquê de nunca mais tê-laS escutado.
E também nunca mais tinha tirado do lenço de seda preta o tarot de Marselha.
O conselho: um pouco de loucura. Quando, na mesma mão, o eremita, paradoxalmente, fala em prudência, sabedoria, discernimento.
O sol passado, o diabo presente, o carro futuro. Vigor. Tentação. Intuição.

Desatenta, sob o impacto, perdi o compasso das horas e não procurei saber mais quando deveria. Perdi o óbvio, teci estrelas. Despertei desnorteada, que fatos novos tudo mudam.

Mantenho a calma, o encanto, a vontade de rever, ouvir, falar, revelar, descobrir. De tentar sublimar o que sobra. E beber do possível.

Guardo novamente o disco e o baralho. Ambos de enorme inutilidade quando a vida "é real e de viés”.

Jampa

SPA, SPI. Olheiras e olheiras. Síndrome do pensamento acelerado, síndrome da perna inquieta. Duas horas e meia de sono, ansiedade à flor do esôfago, vigília até amanhecer. II, que não é parte II, mas insônia intermediária. Clareou e nem queria, mas é o jeito ir. Ela me espera, bonachona – será que dessa vez ainda? – dedos afiados para puxões de orelha. E eu bem queria ter coragem de dizer que cansei, que me enchi, que desisto, que pra que é que eu quero um pedaço de papel?, que não consegui mais fazer nada que se aproveitasse minimamente ou estou ficando mais crítica ainda comigo - e nem sei se mais é possível - que ela se enganou, que não tenho disciplina, nem tempo, que deprimi, me apaixonei, e aí não rolou, e desapaixonei, e tô achando que vai acontecer de novo, ou não, ou já aconteceu mas estou negando - a faca entrando e eu negando, que onde já se viu, se nem sei quem é? e dos dezoito anos nem mais vejo a cor! – que me dispersei e perdi o fio e me enrosquei na meada inteira...

O diabo é que me afeiçoei a ela, às suas bochechas rosadas, a tudo que me ensinou e ensina o tempo todo, sem falar, só vendo como ela é e vive e faz e não pára minuto nenhum no auge dos seus mais de sessenta e por isso tenho que prosseguir e aí me violento, e me descabelo, e ainda lhe dou alegria, prometo, um dia, não lhe decepciono, ganho um abraço arrochado, boto meu canudo dobradinho no bolso, deixo de obedecer ordens de filhos da puta, vou fazer o que gosto, e só em pensar assim já tá valendo a pena tomar banho de chuva, dormir na estrada, percorrer sei lá quantos quilômetros e voltar. Orientadazinha da silva. À bientôt.

domingo, 17 de agosto de 2008

do presente

Ri com os olhos, miúdos, nadando nos meus
Sonha sonhos onde quero estar
Emprestou-me umas cores pra eu brincar de fantasia
E me disse tanto, e me disse pouco,
e me deu de presente um raio de luz
que colei na porta da entrada de casa
E me mostrou uma estrada que desconheço
um caminho pra onde olho e não diviso medo, dor ou escuridão
por onde não sei se vou, não sei se vai, não sei se vamos,
mas que é sempre um caminho novo
que leva a um mundo novo
pois que sem luz, brilho, cor, doce, sal,
pois que sem poesia e sonho
não há vida que valha
não há rota possível
Há pouco eu não tinha nada incomum
hoje, tenho um segredo
e mais não quero
há um menino cujas mãos desejo entre as minhas
há um caminho que com ele seguiria
há um sonho, e por ele, me refaço e refloresço.

sábado, 16 de agosto de 2008

do medo


Forçou a fechadura, abriu a gaveta e saiu. Foi se aproximando devagar, esquivo, até que se acercou do coração e penetrou inteiro no corpo dela. E o pensava dominado, até então. Enganou-se. Contrariada, quis saber como o permitiu, como não o viu chegando, ameaçador, como não saiu correndo, como não fugiu a tempo. Pensou em afogá-lo com álcool e fumaça. Não ia adiantar. De algum modo sobreviveria e ressurgiria depois, persistente. Pensou em ceder, mas não era do seu feitio, nunca tinha sido.

Observou-o detalhadamente e viu o quanto era fraco, acanhado, insignificante mesmo, o medo que fugira da gaveta.

“Eu ainda te procuro, pelo amor, pelo futuro/Me recuso a desistir de ser feliz” – disse a canção no rádio. Cantou junto. Baixinho. Mais alto. Gritando. Foi aí que o viu - o medo - murchando, minguando, encolhendo. Até desaparecer.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

do despertar

O frio já durava, e a vida, esquecida lá fora. Pela trama da coberta via o mundo. Pálida, morna, quieta, à espreita de não sabia o quê. O vestido vermelho mofando, esperando, no guarda-roupa.

Pensou no tempo precioso despendido. Nas horas mortas. Silenciosas. Ensurdecedoras. Líquido e sal vertidos. Estradas não trilhadas durante a escuridão. Poemas queimados, retratos guardados, canções caladas, desencontros. A poesia de Federico embalando uma tristeza funda no dilúvio da cidade nordestina .
À noite, um morcego entrou em casa, desnorteado, deu voltas pela sala, enveredou pela porta do quarto, escolheu a janela fechada, aquietou-se. Sinal? O susto rompeu a letargia. Expulsou-o, apavorada, sem ter por quem chamar. Fechou de novo a porta.
Pensou então nos porquês todos e na ausência de reações por tanto tempo. Pensou que o mês findava, a estação findava. A desesperança teria que findar também.

Amanhecendo, quis um novo caminho. Promessa de primavera se avizinhando.
Abriu primeiro as janelas. Depois as portas. Deixou o sol invadir a sala, a casa, a alma. Correu os olhos em volta, dobrou o medo, guardou-o na gaveta, trancou-o à chave. Soltou os cabelos, respirou longo, tomou uma dose de bálsamo do tempo, pôs o vestido vermelho. Sem hesitar, ganhou o mundo, que a vida real se impunha. E desejou-a inteira e intensa, que não havia nada a perder.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

da partida

A saudade é parafuso. Trem de metrô. Tema recorrente. A saudade é um avião indo embora.
A ausência é um soco na boca do estômago.

Ele me disse que haviam dois: o que existe; o que eu inventei.

E eu queria um minuto do primeiro. Bastaria. Um riso. Um oi. Um olhar. Um abraço. Um momento para aplacar a falta. Pra desenevoar os olhos. Pra fazer voltar o brilho. Contento-me com pouquíssimo, quando mais não há. Apenas futuros bons amigos.

E eu queria tudo do segundo. Risos. Poucas palavras. Calor de corpos em mistura nossa. Enlaçar de línguas, confusão de pernas, reencontro de pele, espaços mínimos entre nós. Seiva, sem lágrimas. Gozo e suor. Fome saciada. Silêncio bom. Sou ambiciosa quando é possível.

Quando o mundo cai, perco tudo. Esqueço, não dou atenção a chaves, carteira, telefones, guarda-chuvas. Uns doidos amigos meus da Física me falaram de um universo paralelo pra onde vão os objetos perdidos. É o universo das coisas desaparecidas - uma boca de buraco negro onde elas ficam gravitando até serem sugadas pra dentro, e aí, já foi. Nunca mais. Por obra da atração desse universo sobre as tais coisas, perdi telefone. Por obra da dor de cotovelo também. Calha de eu beber demais quando dói. Calha de eu perder objetos quando bebo demais. Aliaram-se os dois - o universo e a dor - na sabotagem. Por obra desse encadeamento de reveses perdi de ouvir a voz dele. Talvez de vê-lo.

Talvez ele nem quisesse mesmo, de fato, aí tudo caiu como uma luva. Juntou a falta de fome com a vontade de não comer. Depois se foi. E depois não há. Ou há. Não sei. Com ele nunca sei. Só estou. Espero. Disponho-me. Sinto. Preciso. Quero.

Um dia não vou querer mais além do primeiro. Ele deve esperar por isso. Ou nem pensar, também não sei. Se sim, poderemos nos ver mais, rir juntos de tudo e de nada, de coisas corriqueiras, de coisas sérias. Ser amigos, talvez.

Hoje ele pensa que eu complico. E eu sei que sou descomplicadíssima. E fico imaginando como seria a situação inversa. Em como lidaria com ela se tivesse nas mãos o domínio da história. Acho que eu seria boa. Como acho que ele é bom.

Gosto do primeiro, do que existe, de quem conheço pouquíssimo, como diz. Mesmo sabendo que não se tornará o que inventei. Que não há caminho para nós. Que não há a contrapartida do querer.

Hoje se foi sem que eu o tivesse visto. A cada minuto, mais se distancia. A cada milha, mais dói. As olheiras aumentam - acúmulo de noites insones de olhos lavados – e não tenho mais fome.

A ausência é um soco na boca do estômago.

Aconselhável é não esquecer que vai passar.

“A saudade é um trem de metrô.
Subterrâneo obscuro escuro claro, é um trem de metrô.
A saudade é prego, parafuso.
Quanto mais aperta, tanto mais difícil arrancar”.
(Zeca Baleiro)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

minha casa

nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda

quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas
(Baleiro)

Natal hoje me faz pensar em Macondo.

Aí desisti de pegar a estrada molhada, provavelmente esburacada, pra ficar onde preciso estar: aqui. Pra ficar com quem quero estar: comigo. Não quero ser estanque mesmo, daí faço estrada em minha casa e por ela sigo devidamente protegida de chuvas e intempéries outras.

Não é tão comum, mas amanheci me querendo um bem danado. Faz frio, chove, o dia podia estar uma chatice. Não está. Estamos, eu e uns papéis e livros, em estado de enamoramento. Criando intimidade, cumplicidade. Reconciliamo-nos, faz um tempinho.

Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, minha avó não o dizia, mas poderia ter dito. Então, nesse primeiro tempo do enlace, deles só recebo. E eles querem dar. Há aí, pois, um acordo. Depois decidimos o que fazer no segundo tempo.

Com água demais, umidade demais. Tudo mofa, o que não chega a ser um problema: depois tudo enxuga e refloresce. Aí sim, nos arrumamos e caímos na estrada, estilo Novos Baianos, 'que o mundo é oval e a vida é uma'. Ou nos largamos um pouco, deixando previamente acertado o reencontro, que minh’alma setembrina precisa de um mínimo de programação e expectativa.

Racionalmente bem, pois, contesto os esotéricos de plantão, a relacionar sempre as emoções com o elemento água. E dou fé.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

De fantasmas

Em um desses dias que o sol não aquece, uma dessas manhãs em que a cabeça se recusa a pensar, decidiu sair à procura. A noite insone, de assombrações espalhadas pela casa revirando coisas, empurrando portas, semeando sombras, acentuou-lhe as olheiras. Na manhã tardia, de luz ferindo os olhos, o vento era escasso e o tempo incerto. Vestiu-se apressado e seguiu.

Parecia que pra todo mundo tinha sido assim também, aquela noite. Na rua, ficou sem saber, dos poucos passantes, se eram vivos ou os mesmos fantasmas da véspera. Desceu a ladeira parando nas esquinas, indagando dos muros, dos últimos vigias sonolentos, onde poderia encontrar. Subiu a avenida, pegou a estrada principal, sempre olhando as calçadas, procurando um rosto, uma pista, um sinal. As casas passando, oficinas, farmácias, botecos, oscilavam entre hostis e desconhecidos. Só as árvores enfileiradas num dos lados do caminho traziam algum conforto. Foi assim a passagem até chegar ao velho bairro. Nele tudo estava diferente. Nada das construções primeiras, dos primeiros moradores, das casas de muro baixo, das cadeiras nas calçadas. Nenhum rosto conhecido, que se porventura remanescente, hoje se resguardava, protegido por cerca elétrica qualquer. O vendeiro era outro, os vizinhos também. Nada por lá.
Fez o caminho inverso, confuso.
De volta à casa vazia, encerrou a busca.
De quem ou do quê nunca soube. Talvez de consolo, perdão. Talvez de alguém que um dia deixou. Talvez de uma vida que ficou para trás: vozes amigas, calor, certezas, alegrias; de tempo bom que não volta mais.
Chamou a faxineira, apressado. Mais que hora de varrer dali a poeira dos anos e expulsar os fantasmas. De vez.

domingo, 3 de agosto de 2008

Palavras

Eu já o tinha visto, muitas, muitas vezes, o moço bonito.
Nem tão simpático, tampouco o contrário. Aparentemente recatado, meio tímido, meio distante, meio blasé.
Tinha pressentido algo mais, um pouco do profundo aflorava da capa. Sutil. Foi há tempos. E foi só.
Sumiu. Esqueci.
Um dia, fortuito, ele voltou diferente. Meu olhar também. Comecei a esmiuçá-lo, invasiva, loba em êxtase com a fartura do banquete oferecido. Vísceras em exposição, vi-o, em parte, pelo avesso. A partir de dentro. Daí me agradou, e me agradou em profundo. Devorei dele o que pude. Esclareço: palavras - eram palavras – e nelas, alma e dor, vivência e gozo, invenção e memórias. O mais não perdeu a beleza, mas não foi o que ali, naquele encontro, me manteve atenta.
Ficou então fazendo parte dos meus dias. Uns tempos, amiúde. Noutros, espaçadamente. Noutros mais, ausente, ressurgindo depois de quando em vez. Integrei-o às minhas próprias palavras, agradecida. Tema. Canção. Idéia.

Gosto das trocas. Das boas. As que somam. Quis retribuir mas não sabia como. Não havia muito o que eu pudesse dar. Era um tempo sem luz, denso e de despedida, e ele me dizia que a dor não é privilégio de alguns. Meio fênix, meio otimista, andei buscando veredas para sair do escuro. Só pude oferecer o que tinha à mão no momento, pelo tanto que ele já havia me dado: palavras.

Mas em verdade, em verdade, confesso: ainda quis dele também, de quebra, um outro olhar.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Reciclagem

Onde se dá a quebra? Onde, a curva em que o amor começa a se desinventar? Em que palavra (mal)dita, em que espera, em que conjunção astral, em que eclipse?

Em que momento se perde a possibilidade do que se ganharia?

Por qual brecha do tempo eu te deixei escorrer?

Cacos enterrados, ouço Jacques Brel: “je creuserai la terre jusqu'après ma mort pour couvrir ton corps d'or et de lumière”.

Teu corpo. Ouro e luz. Enlevo perdido, vidro que eu não soube evitar que caísse e se partisse. E desse vidro te refarei. E dele, fundido pela chama, outro corpo inteiro, de outra forma, de outra cor, renascerá.


terça-feira, 29 de julho de 2008

Da fogueira das vaidades e do anonimato

É complicado viver em uma cidade que cresceu depressa, onde ainda impera o pensamento provinciano. Tenho visto cá e lá, navegando na internet, de concidadãos, em páginas interativas, discussões tão plenas de citações quanto estéreis, sobre o sexo dos anjos, a morte da bezerra e temas afins. Trocas de farpas, competição, uns tentando se sobrepor aos outros, sem perceber que ainda que diferentes, para todos haverá espaço. Por trás dessas rinhas, para qualquer observador atento, vaza a intenção real dos interlocutores: a vaidosa afirmação de um presumido conhecimento. Aí ele se perde do seu fim mais nobre: a partilha. O conhecimento, creio, só tem sentido quando e se compartilhado, distribuído, democratizado. Mas cada um desses exibicionistas - pseudo-intelectuais de plantão - se esmera em apenas enumerar suas qualidades de leitor, de cineasta, de teatrólogo, de fazedor de arte. Acrescentando o quê a quem?

Quem nasceu e cresceu em cidade pequena e teve depois a experiência de viver em metrópole, sabe o que é o anonimato. É doloroso, é solitário, mas poucas vivências são tão enriquecedoras. Isso é: para quem sabe delas tirar lições. Longe dos seus, das suas referências todas, sem conhecer ninguém, sem ter com quem trocar palavra, sem ter com quem contar, você se dá conta do que realmente é ali: nada. Ninguém. Você percebe que aquele pequeno universo onde está inserido não dará pela sua falta se você sumir. Que tudo continuará tal e qual. Que a vida seguirá seu curso, malgrado o seu desaparecimento.
A partir daí é possível se reinventar. Perceber o que realmente conta. Ser percebido por quem você é. Sem títulos. Sem reverências. Despido. Ser querido ou querer, por afinidade, empatia, qualidades humanas. Fora da superficialidade da fogueira das vaidades, da afirmação da bagagem adquirida.
O anonimato ensina, entre outras coisas, que todos, todos os saberes, provenientes dos simples ou dos consagrados, hão de ter seu valor.


sábado, 26 de julho de 2008

Última forma

"É, como eu falei, não ia durar. Eu bem que avisei: vai desmoronar, hoje ou amanhã..."
Miltinho abafa o palavrão que me engasgava, cantando Baden e Paulo Pinheiro. Deixo que exerçam, a voz dele e o palavrão, sua função terapêutica.
Vi ontem uma porção de gente, conhecida e não, jovens e dinossauros. Pastamos todos juntos, comungando a noite. A moça bela-burra com quem você deitou. O marido inocentemente feliz a tiracolo. Meu violonista predileto. Os chorões. Uns amigos. Uns franceses. Umas putas. Uns putos.
Vi desfilando no beco escuro, personagens do seu universo, tão rodrigueano. Lamentei por tudo, ma non troppo. Cantei até ficar rouca. Entornei umas tantas cicarelis. Troquei idéias com quem não conhecia. Picotei, rasguei, triturei o seu retrato. Não o joguei na calçada. Podia alguém pegar e colar e guardar.
Fui ficando, até o bar fechar. Fui ficando, até o povo sumir. Fui ficando, até a noite clarear. Fui ficando, até querer sair, levando minhas rimas óbvias no meu carro desbotado, trilhando irresponsavelmente as ruas bêbadas.
"E sabendo com quem eu lidei, não vou me prejudicar. Nem sofrer, nem chorar. Nem vou voltar atrás. Estou no meu lugar. Não há razão pra se ter paz com quem só quis rasgar o meu cartaz. Agora pra mim você não é nada mais..." - canta o MPB4.
Nunca lambi um cabo de guarda-chuva, logo, nunca entendi porque há quem diga que ressaca deixa na boca um gosto de cabo de guarda-chuva. De qualquer forma, nenhuma ressaca. Nem moral, que é a piorzinha delas. Vasculhando a bolsa encontrei o diabo do retrato intacto, me sorrindo descaradamente.
"E qualquer um pode se enganar. Você foi comum, pois é, você foi vulgar. O que é que eu fui fazer, quando dispus te acompanhar? Porém pra mim você morreu. Você foi castigo que Deus me deu" - prossegue o fundo musical.
Vou enfiar o seu retrato embaixo de todos os outros da caixa de papelão. Quando tiver esquecido, arrumo a caixa pra ver se ele ainda me causa algum impacto. Por enquanto, vou escutando repetidamente "última forma": "e como sempre se faz, aquele abraço, adeus e até nunca mais".

sexta-feira, 25 de julho de 2008

dos olhares

Devo estar ovulando - pensou. Ou estava dormindo até então, só podia ser isso.

Ruinzinha como era pra perceber olhares, sempre tinha vivido as histórias afetivas mais improváveis de darem certo.
A mãe disse uma vez só em toda a vida: "é, você é uma moça 'até' vistosa". Insegura como quê, não se percebia lá muito bem. A timidez piorava as coisas. Família grande, zelosa, preocupadíssima com o seu futuro intelectual, não podia alimentar vaidades, assuntos menores. Sentenciou, pois: "não fosse pelo seu esforço em aprender, sua curiosidade intelectual, você seria nula", ou algo assim. Absorveu por um tempo longo isso. Depois mandou às favas as expectativas dos outros e tratou de ir ser feliz. Vendeu os livros no sebo, gastou os trocados com roupas, perfumes, batons e outros mimos. A natureza ajudava, os esportes completaram o serviço. O corte de cabelo anos 80 foi definitivamente abolido. Com o resultado, satisfatório, os olhares proliferaram. Aí ficou com saudade dos livros, tratou de arrumar trabalho, voltou aos sebos, comprou outros livros, abandonou os esportes. O primeiro investimento era mesmo o que lhe agradava. Desdenhou os olhares e foi tocando a vida.
Agora inaugurava outra fase só. Novamente. Em uma cidade com tantas mulheres, o tempo jogando contra não ajudava muito, mas, surpreendentemente, voltaram os olhares. Outros, de mais velhos, mas ainda assim, inesperados.
_ O problema não é com você. É com sua cabeça. Até tem quem queira, mas você é que parece ter a mira torta, fora de prumo - disse o espelho.
Começava a achar que ele tinha razão. Pensou na trajetória do passado. Na maior parte das poucas e longas histórias que vivera, tinha sido escolhida. Não deram lá muito certo. Ou deram, por algum tempo. Nas que quis viver, nas escolhas que queria fazer, invariavelmente não encontrava ressonância. E de repente, depois de tanto tempo, abriam-se algumas portas, tinha algo de novo no ar.
Voltou ao espelho, que como o de Cecília, tinha alguns anos a mais que ela. Capitulou: "você venceu. Vou tratar de aprumar a mira. Aproveitar a ovulação para retribuir os olhares que podem valer a pena".
Era hora de acordar.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Diplomacia

Passava da hora de mudar de foco, de alvo. Até porque o derradeiro não tinha vingado. Mas ainda que prenhe de impossibilidades, lhe rendeu bons frutos: menos cinco quilos, liberdade, reconciliação com a escrita, um amigo de ouro. Pro futuro, talvez dois. Vá saber. Era um escorpião. Outro, aliás.
Quando encontrou o primeiro, era adolescente. Ele, dez anos mais velho, achava interessante trocar idéias com aquela moça que lia. Parou por aí. Se percebeu algo mais, se fez de desentendido. Com o segundo, o buraco era mais embaixo. Inaugurou com este uma bela coleção de nuncas e nãos. Um ano transcorreu até que fechou o ciclo com mais um não.
Foras, quem não os deu? Já tinha dado alguns, tomado outros. Nunca nenhum assim antes. Daqueles bem no capricho, de quando você não quer ferir, nem magoar, quando preza o outro e aí vai tentar convencê-lo de que na verdade ele não gosta mesmo de você. Que aquilo tudo é criação, impressão ou coisa parecida.

Quis dizer que não era idiota, que sabia pelo menos o que sentia. Resolveu deixar pra lá. Quis dizer que concordava com ele, que ninguém conhecia ninguém, que tudo o que se tinha eram impressões sobre os outros. Quis dizer que amealhou discretamente, ao longo daquele ano, todas as informações que podia sobre ele, tamanha era a sede de conhecê-lo, tanto era o querer. Informações colhidas junto a pessoas que o conheceram, que passaram por sua vida ou ainda permaneciam nela. De um amigo dele, histórias, vivências, exaltação de suas qualidades; de uma ex-namorada, carinho, admiração; de um ex-amigo, xingamentos diversos, relatos de traição e deslealdade, mágoas e raivas, sentimentos confusos; de conhecidos, depoimentos controversos, testemunhos de casos pitorescos, de aventuras, de paixões e sem-vergonhices. Dele mesmo, um sorriso que fazia tudo o mais parecer sem importância e iluminar a vida por um mês, no mínimo; uma voz arrastada, preguiçosa, mansa, que dava sentido às suas noites vãs. Quis dizer que sabia que ele era só um homem, cheio de contradições e defeitos, como os demais. Que o querer ou não querer não obedeciam sempre à razão e à lógica. Não disse. "Tá legal, eu aceito o argumento" - decidiu.
Na manhã de chuva do day after acordou cedo e de alma limpa, como se o vinho da noite anterior fora água. A alegria da véspera continuava lá. A vida, infinita em promessas. À frente, um caminho a construir. Antônio Machado deu o tom: "caminhante, não há caminho/faz-se o caminho ao andar".
Há finais e finais. A história já tinha doído tanto durante, que quando desistiu dela, nem doeu mais. Pelo menos, não até aquele momento. Boa samaritana que às vezes era, ainda sob o efeito da ferroada do escorpião, tratou de perceber no desfecho, qualidades, como se não bastassem as que já constavam do repertório. Concluiu: "se ele não fosse tanto, assim, talvez tivesse doído". A diplomacia é mesmo o segredo do negócio.