quinta-feira, 24 de julho de 2008

Diplomacia

Passava da hora de mudar de foco, de alvo. Até porque o derradeiro não tinha vingado. Mas ainda que prenhe de impossibilidades, lhe rendeu bons frutos: menos cinco quilos, liberdade, reconciliação com a escrita, um amigo de ouro. Pro futuro, talvez dois. Vá saber. Era um escorpião. Outro, aliás.
Quando encontrou o primeiro, era adolescente. Ele, dez anos mais velho, achava interessante trocar idéias com aquela moça que lia. Parou por aí. Se percebeu algo mais, se fez de desentendido. Com o segundo, o buraco era mais embaixo. Inaugurou com este uma bela coleção de nuncas e nãos. Um ano transcorreu até que fechou o ciclo com mais um não.
Foras, quem não os deu? Já tinha dado alguns, tomado outros. Nunca nenhum assim antes. Daqueles bem no capricho, de quando você não quer ferir, nem magoar, quando preza o outro e aí vai tentar convencê-lo de que na verdade ele não gosta mesmo de você. Que aquilo tudo é criação, impressão ou coisa parecida.

Quis dizer que não era idiota, que sabia pelo menos o que sentia. Resolveu deixar pra lá. Quis dizer que concordava com ele, que ninguém conhecia ninguém, que tudo o que se tinha eram impressões sobre os outros. Quis dizer que amealhou discretamente, ao longo daquele ano, todas as informações que podia sobre ele, tamanha era a sede de conhecê-lo, tanto era o querer. Informações colhidas junto a pessoas que o conheceram, que passaram por sua vida ou ainda permaneciam nela. De um amigo dele, histórias, vivências, exaltação de suas qualidades; de uma ex-namorada, carinho, admiração; de um ex-amigo, xingamentos diversos, relatos de traição e deslealdade, mágoas e raivas, sentimentos confusos; de conhecidos, depoimentos controversos, testemunhos de casos pitorescos, de aventuras, de paixões e sem-vergonhices. Dele mesmo, um sorriso que fazia tudo o mais parecer sem importância e iluminar a vida por um mês, no mínimo; uma voz arrastada, preguiçosa, mansa, que dava sentido às suas noites vãs. Quis dizer que sabia que ele era só um homem, cheio de contradições e defeitos, como os demais. Que o querer ou não querer não obedeciam sempre à razão e à lógica. Não disse. "Tá legal, eu aceito o argumento" - decidiu.
Na manhã de chuva do day after acordou cedo e de alma limpa, como se o vinho da noite anterior fora água. A alegria da véspera continuava lá. A vida, infinita em promessas. À frente, um caminho a construir. Antônio Machado deu o tom: "caminhante, não há caminho/faz-se o caminho ao andar".
Há finais e finais. A história já tinha doído tanto durante, que quando desistiu dela, nem doeu mais. Pelo menos, não até aquele momento. Boa samaritana que às vezes era, ainda sob o efeito da ferroada do escorpião, tratou de perceber no desfecho, qualidades, como se não bastassem as que já constavam do repertório. Concluiu: "se ele não fosse tanto, assim, talvez tivesse doído". A diplomacia é mesmo o segredo do negócio.

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