terça-feira, 9 de setembro de 2008

de labirintos e amortecedores

Tonta. Segunda vez desde a semana passada. Tudo focado, aí um movimento mais brusco, um meio-giro de pescoço mais ligeiro, procurando uma rua, um número, e a rua em frente sai do lugar e demora a voltar mais que sempre. Quase me assusto, aí digo que ela não volta, não a rua, mas a vertigem, de jeito nenhum, nem que eu tenha que voltar a correr, a comer, a parar de fumar. E não volta, que já veio no derradeiro dezembro, durou o mês inteiro, sem álcool, comprimido diário, parede sempre colada com a mão, internação forçada no apartamento vazio, mundo caindo ao redor, em cima, trabalho criando teia de aranha, eu me enredando nela, caindo e de pé, só a impressão. E fui ver o que era: um tal de distúrbio do labirinto. Podia ser o peso do mundo. Podia ser da idade, os triglicérides, o tabaco, podia ser ausência, falta, solidão, doença na família, desesperança, tudo isso acondicionado, parece-me, no ouvido médio, numas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilíbrio embora.

Não gosto de remédio, médico, hospital, cheiro de éter. Nem suporto dor, doença, amofinamento, repouso e similares. Entre os dois ou mais, engoli uma bomba, dizendo: quem lhe chamou de volta? Equilíbrio agora é do que eu mais preciso. E sem tempo pra não tê-lo, xinguei o labirinto até umas horas.

o, e umas pedrinhas flutuantes que saem do lugar levando o equilrar de fumar, comerEntão, evitando olhar pros lados - mas como encontrar os endereços senão olhando? -, fui-me, ruas afora, escutando o sambinha antigo de Vanzolini no rádio imaginário do carro, cantarolando, como sempre, pro pensamento não ficar fazendo eco no côco: "saiu de casa, com o terno tropical/camisa creme, lenço e gravata igual/jantou e saiu satisfeito/antes da meia-noite morreu com um tiro no peito". Sangue, cravo branco, algo assim. Tem música que cola no miolo. Essa quero não - recusei. E não vinha outra.
No caminho, vontade nenhuma, prazer nenhum, todas elas e todos eles. No caminho, a procura difícil: vaga pra parar. Uma só, frente a uma clínica – Holos. Terapia adiada derna de 1912. Agência de viagens ao lado. Qual das duas? Viagem ou terapia? Nenhuma, que o número não batia. Padaria do outro lado da rua, nem pra comprar um sonho. Fechada, às três da tarde. Onde já se viu? Não se sonha mais nessa cidade?
E o endereço, finalmente, não achei. E o barro do bairro já não é mais vermelho, quase ninguém é mais vermelho. Parece que perdeu o significado ou ficou lá atrás, num ponto vermelho da história.
Numas de já que taí deixa ficar, me aventurei mais adentro. Pois não é que a rua ao lado da padaria mudou até pouco? Ainda é de paralelepípedos, nenhum edifício subiu por lá, uns 40% das casas ainda conservam a fachada de décadas. Lembrei que de casa até a padaria era um bom pedaço de chão, e quando estreei a ida lá só, era a própria independente. Falar em paralelepípedos, lembrei também que foi a primeira palavra que o avô, não o meu, ensinou pra neta de um ano que a repetia sem atropelo, só pra contrariar quem não acreditasse. Lembrei do bolo - ô bolo bom! - marrom no meio, branco nas pontas, do cheiro de pão no fim da tarde, da fumaça da lenha no forno da padaria... Hoje não gosto mais de bolo, nada doce, só sal, salgado, bem salgado, café forte, pimenta brava, tempero.
Na casa velha do barro, azul desbotado, santos e fotos de mortos nas paredes, caminhos de cupim, formigas levando o derradeiro embora, ainda um café forte, que vou e encaro, pedindo licença ao labirinto, que não sou bem gente, nem guardo o leito, como no poema de Alex Nascimento que um dia colei na parede do quarto de onde fiquei ausente por bons ou maus treze anos. Tudo no lugar, pois, nenhuma nova vertigem, vou-me, espreitando as laterais sem balançar muito a cabeça, procurar mais cantos pra ir, forçosamente, que hay que trabajar, e vem geraldo, o vandré, entristecendo a cachola de música: "eu vou voltar pra mim/seguir sozinho assim/até me consumir ou consumir toda essa dor/até sentir de novo o coração capaz de amor". E a recuso, também, e a afasto, e me afasto, e faço o percurso de volta, e as ruas já não dançam, e não permito essa cantiga, que fora o labirinto querendo desconjuntar, entro mesmo, estranhamente, é em outra: "socorro, eu já não estou sentindo nada".

"o amor

o amor tece

o amor tece dores

amortecedores"

(Everardo Ramos)


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