sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Carta a Antônio 2008.2

Caro Antônio,

Eu lhe disse adeus, uns tempos atrás. E até breve, até um dia.
Até hoje.
É que ontem, no bar, ouvi Praça Clóvis e lembrei de você, do retrato rasgado, jogado no lixo, recomposto milagrosamente, perdido no fundo da caixa de papelão sob outros retratos esquecidos e empoeirados. Você há de me perdoar por isso, eu sei. Tornei pois a arrumar a caixa. Sem danos.
Estive longe, lejos. Nem sequer lhe escrevi um bilhete comemorativo pela passagem de um ano do nosso primeiro encontro.
Foi um julho estranho, este. Muitas chuvas e um sol inusitado interrompendo uma longa espera.
Soube que você andou pela cidade. Como não nos vimos, parabéns para nós agora.
Houve um moço, nesse meio-tempo, você deve saber.
Não sabe é o quanto eu faria pelo amor desse moço. Como não me foi dado fazer com você. Faria mais, confesso, posto que esteve bem junto ao meu coração. Você sabe como amo tortamente, quão fundo me lanço, o quanto me reduzo, agigantando o outro. Como fico piegas, patética, risível, e de tanto me assustar e me encolher, desapareço. Como conosco, tal e qual ocorreu, que as histórias são parecidas, que é difícil arrancar planta sem deixar raiz. Com ele ousei muito mais, despi lágrimas e pudores. E ele se foi.
Tive idéias, chegadas as notícias depois. Nada trágico e ao mesmo tempo, sim. Não pensei em arsênico, curare, estriquinina. Pensei em botox, academia, silicone, curso intensivo de alquimia, elixir da juventude, renew clinical. Mas nada disso era rápido. Nem retroativo.
O tempo é implacável, meu caro Antônio. E leva muito de nós. E deixa muito em nós.
Pensei ainda em mudar de tema, de indumentária, em me aventurar pelo mundo da haute couture, dos scarpins e tallons. O detalhe é que passei da idade, e isso só me faria fútil, não leve. Só me traria arremedo, não sedução. Escolhi o caminho de Baco, que triste não sou.
Voltei aos chorões, revi personagens, bebi do vinho o que suportei. Peço-lhe que desconsidere não termos brindado. Não havia como.
De lá migrei a outras plagas. Saindo, ainda, alguém puxou a barra do meu vestido vermelho. Olhei, ignorei, prossegui até o galpão, levantando poeiras, poeirinhas, poeirão.
Lá, uns jovens. Uns vermelhos. Uns ratos. Uns bons. Um insistente: o da barra do vestido. Olhei melhor. Moço. Belo. Alto. Magro. Olhos negros. Olhar inteligente. Interessante. Interessado. Discurso vermelhoso. Pensei: por que não? Despensei: porque não, que outra imagem me veio à lembrança.
Não esperei o bar fechar, a noite findar nem o povo sumir. Fechei um dos olhos, que a estrada se duplicava, na volta. "Puedo escribir los versos más tristes esta noche" - soprou Neruda.
- Qual o quê! - discordei.
Hoje é um dia novo, escalo as paredes e volto à superfície, inteira mas não intacta. Viva.
Quis lhe contar tudo isso, meu caro Antônio, para voltar a falar com você sobre os abismos. Hoje discordo, em parte, de Paul Valéry. Não é só a vegetação que os cobre que os faz diferentes. Há a profundidade deles também. Afora isso, são mesmo muito parecidos. Ademais, são todos letais. Surpreendentemente, escapamos depois da queda.

Hoje, um bem-te-vi pôs seu papo amarelo na borda da janela, a primavera anunciada em seu canto.
Daqui lhe envio a imagem do bem-te-vi, meu beijo amigo, meus até um dia, até breve.

Maria

Nenhum comentário: