segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A casa da viúva (em 17/02/2002)

Cinco, sete anos? Não me lembro direito. Estava naquela idade em que o tempo ainda não tem tanta importância e a gente se contenta em guardar fragmentos de imagens, cheiros, sabores, descobertas.

Rua Presidente Bandeira. À época, avenida Dois. Ainda tinha a linha Vila São José pela rua Jaguarari e uma espera tão grande pelo ônibus, que do Barro Vermelho ao Alecrim era melhor ir a pé. Ainda ruas de areia, e de paralelepípedos, muitas. Ainda lentidão no despertar, no caminhar e no viver. Tudo amanhecia meio preguiçoso nos muitos dias de sol de Natal.
A casa funerária era a maior da cidade. Metiam medo todos aqueles caixões roxos e grinaldas artificiais, coisa de assombração, não da morte, que quase sempre parece distante na infância.
Não tinha como desviar, era o roteiro obrigatório até o endereço encantado. Sábado, movimento, feira, comércio, passada a porta do medo, logo ali, vizinho, o endereço.
A Casa ficava abaixo do nível da calçada. Bastava descer uns degraus e se via o balcão. O rosto por detrás me foge, sei que era viúva e sempre vestia preto, com um lenço no cabelo. Sobre o balcão, calendários de santos, do Sagrado Coração, de gatos, de crianças rosadas de olhos azuis. O tesouro, os pequenos livros com capas ilustradas, miolo em papel jornal, modestos, empoeirados, amarelecidos pelo tempo. Custavam o troco da feira. Quando havia troco - quase nunca - minha mãe comprava o que podia. Às vezes um, às vezes mais.
Contavam historias de reinos distantes, dragões e princesas encantadas, combates heróicos e viagens sem fim. Minha imaginação se enchia de pavões voadores, meio bicho, meio nave, cachorros que venciam dragões, reinados subterrâneos que desapareciam miraculosamente à luz do dia.
À noite, meu pai contava e cantava de cor essas historias, todas rimadas e ritmadas, e findava por adormecer. Ele. Eu continuava a viagem até a caverna do dragão, esquecendo o medo das flores de plástico, o calor e os mosquitos, até os olhos pesarem mais que a fantasia.
A funerária cresceu, a calçada subiu. A casa foi engolida pelo asfalto. A viúva desapareceu.
Faz tanto tempo!
Às vezes eles ainda voltam, à noite: o pavão misterioso, Juvenal e os seus cachorros mágicos, Rompe-ferro, Ferrabrás. Às vezes ainda chego até a entrada da caverna e vejo que o dragão continua dormindo seu sono eterno de lenda. É então que durmo também. E sonho, um sonho leve, de sono sem medo.

Nenhum comentário: